Um ciclo Infinito

Allana Emilia

Créditos da imagem: https://weirderthanyouthink.wordpress.com/2016/11/24/contemporary-art-mirror-based
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Em seu último livro, As Margens e o Ditado (Intrínseca, 2023), Ferrante se vale de um trecho de Os diários de Virginia Woolf para comentar seu processo de escrita, que considera verdadeira a partir do momento em que se vale do “depósito da literatura” para buscar o necessário para escrever. E então, continua: “Quem escreve não tem nome. É pura sensibilidade que se nutre de alfabeto e produz alfabeto em um fluxo irrefreável”.

Pensando nessa escrita sem nome, me recordo da discussão elaborada por Foucault em “O que é um Autor?”, texto que aprofunda a discussão sobre autoria e que tem como marco o texto de Barthes. Nessa palestra, Foucault discute sobre as condições de funcionamento dos discursos e afirma que a autoria funciona como uma função, como um operador que caracteriza um modo de ser do discurso. Dessa forma, o nome do autor funciona como um limite textual, que manifesta uma característica do discurso. Esse limite é demarcado a partir de quatro características: A apropriação, a necessidade dessa presença para o texto, a construção de um ser que escreve – entre o autor “real” e o texto – e a presença de signos que identificam esse autor.

A importância do autor como função, como funcionamento junto ao texto, é um caso interessante para pensar a autoria de Ferrante. Ao insistir no anonimato, apesar das revelações de Claudio Gati, apontadas como pouco éticas pelos meios adotados, Ferrante parece não apenas contrariar as premissas do filósofo francês, mas também esvaziar o lugar da presença que os autores contemporâneos têm ocupado na cena atual.

Por isso mesmo, não deixa de ser curioso observar como essa ausência volta a ser ocupada pela movimentação crítica que a própria autora mobiliza escrevendo sobre sua obra para estabelecer um movimento interpretativo sobre sua produção e atuar sobre a recepção crítica. Para voltar a Foucault, seria possível dizer que a autora exerce, mesmo no anonimato, um controle crítico sobre a interpretação de sua obra e que, muitas vezes, a recepção atua como se apenas expandisse unidades de sentido dadas pela autora. É o que acontece, por exemplo, com a noção de frantumaglia, explorada por grande parte da fortuna crítica da obra de Ferrante, a partir das reflexões que Ferrante faz sobre a noção:

A frantumaglia é uma paisagem instável, uma massa aérea ou aquática de destroços infinitos que se
revelam ao eu, brutalmente, como sua verdadeira e única interioridade. A frantumaglia é o depósito do
tempo sem a ordem de uma história, de uma narrativa.

A noção é retomada como central à escrita de Ferrante, por exemplo, por Pamella Oliveira em sua tese sobre a tetralogia, na qual encontramos um inventário do termo e dos modos como a frantumaglia vai sendo modulada à obra ficcional da escritora.

Outro exemplo marcante dessa circulação infinita entre presença e ausência do autor, autoria e crítica é o conjunto de conferências escritas para responder ao convite do Centro Internacional de Estudios Humanísticos Umberto Eco. Embora os textos tenham sido “interpretados” por uma atriz, a leitura das conferências mostra a presença marcante de Ferrante ao apontar, por exemplo, uma origem para a elaboração da relação entre Lila e Lenu, personagens principais de sua famosa tetralogia. Aí, Ferrante comenta o insight que teve ao ler a obra de Adriana Cavarero para retirar dela a dinâmica entre a escritura de LIla e a escritura de Lenu. Quando lemos alguns dos principais comentadores de Ferrante, o episódio é retomado e consolidado como explicação da origem e da dinâmica narrativa da própria Ferrante.

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