Literatura sem ficção?

Luciene Azevedo

Cŕeditos da imagem: Richard Long, Walking a line in Peru, 1972.

Um indicativo de que há algo distinto na maneira como entendemos o que chamamos de literatura no presente está relacionado ao modo como vamos negociando – às vezes com muita resistência – uma ampliação da maneira como a não ficção vai adentrando o território do literário. 

Não é uma questão simples e tampouco é específica de qualquer crise do literário hoje, sequer das artes em geral, porque também é um impasse que vivemos em nosso dia a dia com o enfrentamento às fake news ou com a surpresa meio divertida com o acesso fácil às ferramentas da Inteligência artificial. 

A observação de um caso recente pode ser um exemplo instigante para remexer as diversas e problemáticas camadas dessa expansão da literatura em direção à não ficção. 

Trata-se de Ioga, último livro de Emmanuel Carrère. Logo no início, fica evidente a habilidade narrativa do escritor francês. Parece que começamos a ler um livro sobre práticas meditativas e de autoconhecimento, mas o narrador, que pretende ser “honesto”, apresenta os conceitos dessa filosofia de vida e também os questiona. Dessa forma, o leitor vence com tranquilidade as cento e poucas páginas iniciais do livro. Depois, vem a escuridão. O livro avança pelo período de convívio do narrador com uma violenta crise depressiva que o leva à internação e aos eletrochoques e mergulha na vida dos refugiados que chegam às costas das ilhas gregas, para onde Carrère vai a fim de fazer um trabalho voluntário. Aí, a narrativa passa a ouvir outras histórias de vida. 

E o livro se desmantela ou  – se deslocamos um pouco nossa perspectiva- ganha novos arranjos de leitura. 

O narrador diz que tem inveja de quem não “desnaturaliza” o que conta, a vida que deseja capturar por escrito. Mas esse pacto é cortado de súbito, quase ao final, quando o narrador afirma que inventou muito: “Frederica é um personagem de romance. Quero dizer: se baseia em um modelo distante de quem é a pessoa com quem compartilhei cursos em Le Pikpa, me embebedei de forma memorável e com quem escutei a “Polonesa heróica” de Chopin, mas todo o resto é inventado. É o que acontece fatalmente quando se começa a mudar os nomes próprios: a ficção toma o poder”.

Algo dessa virada, já tinha sido anunciado antes: “não posso dizer deste livro o que disse orgulhosamente de outros: “tudo o que escrevi é certo”. Ao escrevê-lo devo desnaturalizar um pouco, transformar e apagar um outro tanto porque […] não tenho o direito, nem o desejo de contar uma crise que não é o tema deste relato, e por isso vou mentir por omissão”.

Ioga foi lançado como romance, já que a ex-mulher do escritor identificou passagens que chamou de “um espetáculo apresentado como sincero”, mas que se distanciava muito do que tinha sido vivido. Na carta pública que escreveu para o Le monde afirmou não apenas que Carrère não havia estado sequer uma semana em Leros, a ilha grega na qual encontra com Atiq e Hamid e outros meninos refugiados, como restaura a ordem verdadeira da sequência narrativa afirmando que a depressão relatada por Carrrère é consequência da viagem à Grécia, e não como está no livro, pois quando o narrador chega à ilha, já está recuperado. 

E é então que as condições de emergência do livro ganham destaque, invadem o relato e o alteram. A declaração da ex-mulher de Carrère é uma reação ao descumprimento de um pacto formal assinado por ambos que garantia que o escritor não mencionaria mais, a partir do divórcio consumado meses antes do lançamento do livro, esse vínculo afetivo ou circunstâncias privadas que a envolvessem. 

Comenta-se ainda que o livro perdeu a indicação ao prêmio Goncourt em 2020, pois a premiação exclui obras de não ficção e o comitê de seleção queria evitar controvérsias. Depois que a polêmica veio a público, muitos críticos encontraram nas exigências contratuais a explicação para o modo como o romance parece mal costurado e caminha para um final que soa inverossímil. 

Mais do que encontrar a explicação para o desarranjo narrativo, meu interesse está concentrado em especular sobre a associação, quase natural entre literatura e ficção que o episódio deixa ver. Menos interessante me parece a dimensão, digamos, privada dos bastidores da publicação ou a insinuação maliciosa de Mario Sergio Conti na Folha de que tudo tenha se transformado em autoficção.

Carrère já se referiu ao livro como uma “autobiografia psiquiátrica” e se orgulha de ser um autor de não ficção, mas o imbroglio envolvendo o contrato jurídico com a ex-mulher parece empurrá-lo para o que chama de “desnaturalização” do que narra, o força a cruzar a fronteira da invenção: “Existe um critério que nos permita adivinhar se uma história é verídica ou fictícia? […] Não tenho uma resposta, mas me parece que, sem que possa explicar, intuímos. Eu ao menos o intuio.”

Se a hipótese é válida, a explicação para esse deslizamento, então, está em um elemento externo  que atua sobre a autonomia da obra, mas que ao mesmo tempo tenta tirar do episódio um benefício, uma espécie de bônus. 

A que me refiro? Já que foi impelido à invenção, Carrère encontra aí a oportunidade de pleitear um prêmio na categoria “melhor volume de imaginação em prosa”. A reação da ex-mulher retira-lhe essa possibilidade, mas o texto tira proveito dessa injunção: se não é autobiografia, é invenção, “não consegui escapar da ‘desnaturalização’ de minha própria vida”, diria Carrère. 

E a maquinaria desnaturalizadora, o flerte com a ficção, pode ser notado no fecho da narrativa, que arma um arco-íris de felicidade: o narrador reencontra um novo amor (que também é adepta da prática da ioga!), restaura seu equilíbrio psíquico – o lítio equilibrou seu humor e amenizou sua dor-    Hamid e Atiq seguem suas vidas – acompanhadas pelo narrador pelas redes sociais. 

Há aí muitas e diferentes versões de como a ficção está sendo compreendida. Meu interesse por esse episódio está na defesa do próprio autor de uma literatura de não ficção e na maneira como parece ter sido encurralado exatamente por essa nomenclatura, pois a repercussão da polêmica e do parti-pris entre os ex-amantes está calcada na ideia de que há uma separação clara entre a ficção e a autobiografia, de que a não ficção é um elemento estranho- e incômodo- à literatura.

Talvez o final do livro de Carrère, que soa inverossímil, perfeito demais e deixa uma mensagem de felicidade seja apenas uma forma de vingança, um revide que expõe a inadequação de uma visão compensatória da literatura, que limitando-a à ficção a toma como fórmula para aliviar-nos da realidade. 

Publicidade

Uma resposta para “Literatura sem ficção?

  1. Primavera De Oliveira

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s