Autoficção = realidadeficção?

Marília Costa

Créditos da imagem: Antony Gormley, Blind Light, 17 May – 19 August 2007, Hayward Gallery. Image © Stephen White 

Nas últimas postagens aqui no blog, Antônio Caetano e Ramon Amorim comentaram sobre o romance O pai da menina morta de Tiago Ferro.  Antônio discutiu a recusa do termo autoficção por muitos autores e Ramon falou sobre o romance desmontável. Hoje, pretendo trazer para a conversa mais uma perspectiva sobre o livro que venceu o prêmio Jabuti em 2019 na categoria romance.

Embora o livro tenha sido festejado pela crítica e premiado por esferas importantes do campo literário, é notório o estranhamento dos leitores diante da escrita fragmentária e híbrida. Mesmo sendo o romance, desde o seu surgimento na era moderna, caracterizado como um gênero amorfo por natureza porque é uma forma rica em experimentações formais, o fato de a obra de Ferro tomar como mote central da narrativa um episódio trágico da vida do autor, levanta suspeitas sobre se o livro pode ser chamado de romance.

Do ponto de vista da crítica contemporânea, podemos pensar o livro O pai da menina morta a partir da ideia do “fora-e-dentro” desenvolvida pela crítica argentina Josefina Ludmer ao descrever o que ela chama de literaturas pós-autônomas. Segundo Ludmer, muitas produções criadas a partir do século XXI são textos que “não só atravessam a fronteira da ‘literatura’, mas também da ‘ficção’, permanecendo fora-e-dentro das duas fronteiras.”

Apesar de o livro de Tiago Ferro estar inserido no sistema literário (foi lançado por uma grande editora, recebeu prêmios e seu autor defende que escreveu um romance, apesar do dado biográfico), talvez não possa ser lido considerando critérios válidos para as obras modernas, pois é marcado por uma ambiguidade própria à autoficção: ao mesmo tempo é e não é ficção e talvez pudéssemos dizer: é e não é literatura, pelo menos tal como nos acostumamos a ler as obras durante a modernidade.

Antes de publicar o romance pela Todavia, Ferro escreveu um ensaio para a Revista Piauí contando os momentos que antecederam à morte da filha e a experiência do primeiro mês de luto pela perda. Nesse mesmo texto, ele conta que, logo após a morte da filha, publicou diversas fotos e relatos no facebook, criando todo um imaginário sobre os acontecimentos. Em O pai da menina morta encontramos um conteúdo muito próximo ao que lemos no ensaio. Esse gesto do autor de publicar nas redes sociais, e também em uma revista de grande circulação, relatos sobre o acontecimento real da vida do autor que serve de mote para a imaginação narrativa do livro pode ser compreendido como o que Ludmer chama de saída da literatura e entrada na “realidade” e no cotidiano.

A repercussão da morte da filha, veiculada pela imprensa, mas também comentada como um processo de luto nas redes sociais pelo próprio Ferro são elementos “de fora”, mas ao mesmo tempo integram a matéria da ficção. Assim, o doloroso episódio biográfico não deve simplesmente ser confundido com a realidade factual opondo-se à ficção, mas já faz parte da esfera da representação. Considerando o argumento de Ludmer, o livro de Ferro torna difícil para o leitor distinguir o que está  “fora” da ficção (a biografia? a tragédia pessoal?) e o que está “dentro” (a elaboração do luto por meio da linguagem, a experimentação com a forma fragmentária). E é isso o que faz a obra ser tão desafiadora para o leitor.

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3 Respostas para “Autoficção = realidadeficção?

  1. A tragédia é a própria linguagem fragmentar-se numa desnarrativa (mais uma vez a psicanálise ao resgate).
    O interessante deste texto está no último parágrafo, é daí que se deveria começar a reflexão, deixar que a própria desobra estipule as categorias de sua análise.
    Estaria Ferro perversamente animando-se com a preparação do terreno que tocaria a todos como drama de experiência de morte? Note que aqui não me interessa Ferro a pessoa empírica, mas como essa pessoa empírica é apenas ‘site’, local, instância, ‘token’ para essa espécie de força sobrenatural que aporta sobre a empiria e que faz com que, de pura empiria, passe-se à (magia da) arte. É o que há de mais mágico e sobrenatural, contudo, isso é exatamente o que há de mais natural. Por outra: é preciso recordar como a magia sempre teve o comércio com os mortos em seu centro. O Egito antigo era todo um imenso culto à morte. Uma fase do hebraísmo bíblico é inteiramente culto à morte. Mesmo os romanos deixam ver alguns fantasmas em suas cartas (Sêneca? Cícero? Não recordo) e certamente os neoplatônicos, herdando Eros como mídia (meio, médio, médium) entre os mundos, d’O Banquete platônico, discutem muito os fantasmas, ou seja, a morte como fronteira [threshold] do ser. Por outra: o pai etc. é o Diário de terror, de Lúcio Cardoso, reescrito por Ferro.

  2. Obrigada pelo comentário. É muito boa essa possibilidade de diálogo/troca que o blog viabiliza. É uma possibilidade que Ferro tenha preparado o terreno para a publicação do romance, mas não vejo como uma maneira perversa, mas sim como um projeto estético da produção ficcional do autor, estratégia comumente utilizada por outros escritores contemporâneos. No mais, apesar do mote do livro ser a morte da filha, na minha leitura, não vejo “O pai da menina morta” como uma elegia, não é uma homenagem à filha morta. Ele fala pouco dela no livro, fala mais dele, do personagem. O livro é mais orientado por uma força de vida do que de morte porque a própria escrita é um processo de vida, de criação artística.

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