Antonio Caetano

A autoficção traz consigo uma ambiguidade capaz de tensionar as noções de ficção e não-ficção, autor e narrador. Gostaria, então, de refletir brevemente sobre algumas considerações feitas por Manuel Alberca em seu texto “De la autoficción a la antificción – uma reflexión sobre la autobiografía española actual”.
Em seu ensaio, Alberca enumera cuidadosamente as razões que tornaram a autoficção um estilo narrativo de muito sucesso na Espanha, assim como suas suposições sobre o que a mesma pode representar para a reconfiguração do gênero literário da autobiografia, em especial na constituição de um estilo narrativo autobiográfico que o teórico chama de antificção.
Para ele, a autoficção “foi um simples desvio da autobiografia ou uma fase intermediária de seu caminho em direção ao reconhecimento literário e à realização criativa”. Por isso, Alberca adota o termo “antificção” para obras nas quais os autores contam suas vidas sem inventar, sem preencher os vazios com elementos fictícios, mas reconhecendo-os como fundamentais para a narrativa. Nesse formato, os momentos da vida que não podem ser recuperados fielmente, não são simplesmente complementados com a imaginação, mas reconhecidos como vazios fundamentais para a continuidade da narrativa e sua possibilidade de contar e não como apenas a possibilidade de utilização da ficção para preencher as falhas da memória.
Observando como Alberca expõe suas ideias, principalmente sobre a autobiografia, e em como esse é um gênero injustamente subestimado e ignorado pela academia, me flagro inclinado a considerar algo que indicaria uma forte predileção do teórico em relação a um gênero em detrimento do outro (autobiografia em detrimento da autoficção), a ponto deste deslocar a autoficção da suposta posição de gênero textual para a posição de “fase intermediária” de experimentações com a provável finalidade de estabelecer reconhecimento literário à autobiografia. Para Alberca, inclusive, diante da impossibilidade de se narrar a vida fidedignamente, os autores de autoficção se entregam e se deixam levar pela ficção, como se ela deturpasse o discurso autobiográfico, é como se os autores quisessem ser mais “literários” que autobiográficos, na opinião do crítico espanhol.
Minha principal questão é, então, refletir se devemos considerar a “parte ficcional” do texto como demérito do relato autobiográfico, ou não.
Alberca cita alguns exemplos da narrativa espanhola que poderiam ser considerados antificção, tal como o crítico propõe. Em Visión desde el fondo do mar, de Rafael Agullol Murgadas, o narrador escreve para lidar com a morte do pai. Trata-se aí de uma experiência autobiográfica. Sobre o livro, Alberca afirma que “Estes são tópicos [referindo-se à doença e à morte] que não podem ser levados na brincadeira ou tratados com frivolidade.
Mas será mesmo? Estaria o crítico supondo que a ficcionalização de uma experiência dolorosa como a morte ou o luto de um ente querido implicaria em “brincadeira”, consistindo em um demérito desonroso?
Se, como afirma Alberca, a ficção não é uma “verdade superior”, acredito que tampouco deva ser considerada fácil ou intencionalmente como mentira, ou como uma brincadeira sem seriedade, e sim como uma forma singular de verdade, como parte do processo íntimo e criativo de narrar a si mesmo. A ficção pode ser tão reveladora da verdade de um sujeito que se ficcionaliza, quanto podem ser os elementos factuais de sua história.
Eu tenho usado o conceito de “antificção” nas minhas abordagens da autoficção e da literatura de testemunho, mas discordando de Alberca. Pelo menos no Brasil, a autoficção não foi modismo nem arrefeceu. Ela se tornou uma das formas mais usadas pela literatura de testemunho. E essa literatura, por aqui e em autores como Patrick Modiano, J. M. Coetzee e Imre Kertész, fora daqui, tem adotado procedimentos que podemos chamar de antificcionais, no sentido de narrar textos que são configurados como romances, mas que contêm cópias de documentos autênticos ou testemunhos de pessoas com seus nomes reais. É uma antificção como retorno do real. Mas que se configura como romance. A ficção não se opõe à verdade, como bem demonstrou J. R. Searle; ela é apenas pacto de leitura. Podem-se narrar apenas fatos reais nos gêneros ficcionais.
Olá Edson,
obrigado pelo comentário!
Gosto da noção de Searle que você trouxe, sobre a ficção como pacto de leitura. Minha postura vai mais por aí, em perspectivas que não considerem
de forma tão fixa o que é real e o que é ficcional. A leitura do “retorno do real”, por se valer da psicanálise, é uma ferramenta importante para considerarmos principalmente essas narrativas que trazem de alguma forma um trauma, como ocorre em muitos testemunhos. Ultimamente tenho refletido justamente sobre convenções e conceitos; mais especificamente sobre como entendemos a representação na literatura, e como isso pode moldar nosso olhar sobre ela. Penso que a autoficção nos dá meios de fuçar sobre a literatura independente de uma suposta dívida com a autobiografia, ou qual poderia ser sua origem, ou se é gênero literário ou não.
Abç