Os lances de um enxadrista

Nivana Silva


Créditos: “To become a queen” – Victoria Ivanova

Ao problematizar brevemente, em meu último post*, a insuficiência do termo ficção para a análise de diversas obras contemporâneas, afirmei que isso se deve, dentre outras coisas, ao exercício de leitura que tais textos têm requerido do leitor, fazendo transbordar os limites da autonomia estética e da verossimilhança, já que trazem para a cena da interpretação elementos que se encontram externos ao material textual. Lançando mão do questionamento “Por que ficção?”, Luciene Azevedo, também aqui no blog, pondera que o romancista contemporâneo, ademais de arriscar-se a outras técnicas de referencialidade e de redimensionar as fronteiras entre o verossímil e o verdadeiro, fornece ao leitor uma narrativa diante da qual não se pode mais, simplesmente, sustentar a impossibilidade de acreditar na realidade do representado, tal como assegurado pela ficção moderna.

Retomo a reflexão para tentar desenvolver a análise sobre uma importante peça que tem contribuído para o jogo interpretativo e que se manifesta para além do texto: a presença autoral. No referido processo de redimensionamento de fronteiras da ficção contemporânea, essa presença pode influenciar nos modos como a obra é recebida, sendo fruto “de uma atuação, de um sujeito que ‘representa um papel’ na própria ‘vida real’, na sua exposição pública, em suas múltiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas, nas palestras […]”, como elucida Diana Klinger ao tratar do chamado “retorno do autor”, à luz da ideia defendida pelo crítico americano Hal Foster.

Consideremos, assim, que o papel da recepção tem sido impactado por uma suposta intencionalidade autoral, cujo funcionamento, contudo, não seria aquele atrelado à noção romântica de autoria, relacionada à ideia de unidade criativa e pretensa origem que iluminaria o leitor por meio da obra. Menos que uma garantia para a interpretação ou uma inconteste chave de leitura, a presença autoral, no contemporâneo, parece expor o leitor a mais riscos que certezas, suscitando mais perguntas e ambiguidades e esticando, ao máximo, a tensão entre o real e o ficcional.

Nesse contexto, não poderia deixar de mencionar a literatura de Ricardo Lísias, pois me chama a atenção como sua presença autoral influencia a recepção de sua obra. Numa entrevista em 2014, ao referir-se aos seus romances O céu dos suicidas (2012) e Divórcio (2013), ambos narrados por personagens homônimos do autor, Lísias afirma que, embora suas histórias partam de “experiências pessoais e traumáticas”, “isso não significa que o livro [seja] de não-ficção”. E completa: “A leitura que alguns grupos da imprensa fizeram do meu livro Divórcio confirma a crítica que o livro faz a eles. O que eu não esperava era que as pessoas fossem cair como patos nas minhas esparrelas. Ingenuidade minha? Talvez… No romance O Céu dos Suicidas, Ricardo Lísias foi campeão Pan-americano de xadrez aos 13 anos. Eu nunca fui campeão de nada, sou um jogador canhestro […]”.

No caso de Divórcio, a confusão estabelecida pela imbricação entre o verossímil e o factual é acentuada se o leitor lê, por exemplo, “Sobre a arte e o amor”, texto que não foi publicado, mas circulou em uma lista fechada de e-mails. O que temos aí é uma carta enviada ao “Senhor Arnaldo Vuolo” (advogado que mantém um escritório em São Paulo, Vuolo Advogados Associados) como resposta à “Notificação extrajudicial subscrita pelo senhor em nome da minha ex-mulher”, conforme lemos no cabeçalho do texto. Anexas à carta, uma procuração assinada pela demandante, além da própria notificação endereçada a Lísias pela Vuolo Advogados Associados. É fácil, portanto, o leitor tomar como verdadeiros os elementos com os quais o autor brinca de fazer ficção, mas um tipo de “ficção” que se ancora de maneira recorrente em referências factualmente rastreáveis.

Mas sem querer cair na esparrela do que é ou não real e ficcional em Lísias, talvez seja mais produtivo pensar como o autor demonstra ter consciência de todo esse jogo e, em uma série de lances intencionais – embora não haja certeza sobre suas consequências – vai tensionando esses limites ao extremo com sua presença marcante dentro e fora da obra. Nesse sentido, arrisco dizer que há uma disposição de Lísias em atuar rastreando as apropriações e especulações críticas que são geradas a partir de sua literatura para assim tirar proveito da precipitação dos leitores quando caem na armadilha de que tudo está fundamentado na verdade.

Em outras palavras, a presença – que, a princípio, arrastaria o pressuposto da credibilidade e do esclarecimento – é uma peça a mais que infla e embaralha as possibilidades de interpretação. Lísias, então, vai flertando com tais equívocos da recepção e antecipando outros lances, os quais, ao que parece, são usados em prol de suas futuras estratégias narrativas e das formas como vem inscrevendo uma assinatura no campo literário.

*Este texto foi modificado em 23/02/2021

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