Allana Emilia
Créditos da imagem: Maurizio Cattelan Il Super Noi in 50 parts, 1998.
Ao longo do último ano de pesquisa, me dediquei às leituras sobre o gênero ensaio. Primeiro, quis me apropriar da maneira como a fortuna crítica sobre o gênero percebe a forma; tendo lido os principais estudos sobre o ensaio, os Ensaios de Montaigne se transformaram em leitura obrigatória e daí várias outras questões surgiram: como o surgimento da forma ensaio está relacionado à emergência do sujeito Montaigne? – ou melhor como essa imbricação entre o sujeito e o ensaio é essencial para a construção da identidade do Montaigne escritor? Agora, me debruço sobre as narrativas contemporâneas tentando compreender se é possível pensar a presença do ensaio na construção dessas obras e como essas questões aparecem tratadas nos textos.
Timothy Corrigan, realizando um estudo sobre o filme-ensaio, traz pistas sobre a capacidade do ensaístico de produzir reflexões a partir da mobilidade da forma. Ao dizer que “são práticas que desfazem e refazem a forma cinematográfica, perspectivas visuais, geografias públicas, organizações temporais e noções de verdade e juízo na complexidade da experiência”, o autor parece evocar a escrita de Montaigne, marcada por essas características. Essa constante remodelação da perspectiva parece ser um traço não só de obras cinematográficas que Corrigan chama de cinema-ensaio, mas podem também ser pensadas em relação à literatura.
Se quiséssemos estabelecer uma genealogia literária para a forma do romance ensaio não poderíamos deixar de mencionar O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. A obra narra aspectos da vida na Áustria no início do século 20, tendo como personagem principal Ulrich. A multiplicidade de suas perspectivas em relação aos mais variados assuntos – a Kakânia, o que define qualidades ou o que é uma pessoa sem qualidades -, apontam para uma instabilidade do sujeito que vem à tona numa forma também instável, complexa, móvel.
Em A Morte do Pai, de Karl Ove Knausgaard, os detalhes dos dias subsequentes ao falecimento do pai, flashbacks da relação conflituosa relação entre pai e filho e outras considerações aparentemente não relacionadas com a perda do pai (como um relato sobre a adolescência na Noruega na década de 80, o processo de se tornar escritor, até comentários sobre a beleza das paisagens norueguesas) dão à narrativa uma forma fragmentária, em que os temas parecem deslizar um após os outros, sem aparente relação.
O fato de os dois livros mencionados acima apresentarem um sujeito que busca sua própria identidade de uma forma tateante, ensaiando dizer de si em constante reposicionamento frente a sua própria subjetividade, apresentando um processo de reflexão sobre os variados assuntos de que trata, me faz pensar que a tradição iniciada por Montaigne volta de maneira bastante marcante nessas obras. Mas esse é um trabalho que está apenas começando.
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