Nivana Silva
Créditos da Imagem: Equilibrium – Under the Dust Studios (Londres, 2011)
No processo de pesquisa e de escrita sobre o contemporâneo, frequentemente estamos diante das consequências relacionadas à análise de objetos literários, os quais, a despeito da denominação, ultrapassam os contornos daquilo que, na modernidade, se convencionou a ser chamado de literatura. Uma das consequências está relacionada à sensação de insuficiência que certas noções e terminologias nos trazem para lermos, teoricamente, esses objetos, pois eles mobilizam questões que indicam a improdutividade de impor um arcabouço moderno para pensar tais “frutos estranhos” – usando a expressão de Florencia Garramuño – e, ao mesmo tempo, sinalizam a impossibilidade de prescindirmos de uma tradição que está bastante consolidada.
De modo específico, me chamam a atenção dois pontos que tocam na inserção do não literário na literatura e que não deixam de estar conectados. Primeiro, o questionamento do estatuto ficcional de muitas obras (substantivo que também acaba sendo posto em xeque nesse contexto) e, em segundo, a necessidade de problematização das implicações éticas que emergem de algumas manifestações do contemporâneo.
Tenho pensado que as interpretações e apropriações críticas de diversos desses textos requisitam um exercício de leitura que parece extrapolar os limites do pacto ficcional e colocar em cena elementos que, além de muitas vezes encontrarem-se exteriores ao universo literário, estão fundidos à própria figura autoral, não somente àquela que atua no campo e performa máscaras e posições de sujeito, mas também ao que poderia ser chamado de autor empírico, que arrasta de roldão para dentro da obra os supostos fatos sobre sua vida.
E é aí que a questão ética pode ser alvo de reflexão, principalmente quando essas menções biográficas se capilarizam da instância do “eu” para a do “outro” e põem em tensão as fronteiras entre o público e o privado, revelando pessoas e situações, ligadas a referências rastreáveis fora do literário, no interior de histórias recorrentemente chanceladas como (auto)ficção. A título de exemplo, basta lembrarmos de alguns casos envolvendo a exposição da intimidade alheia na literatura e que têm final trágico, como a acusação pública feita a Serge Doubrovsky de que a morte de Ilse Doubrovsky, com quem era casado à época, teria sido provocada pela leitura da narrativa de cunho autoficcional – Le Livre Brisé – que trazia detalhes do alcoolismo da mulher.
No Brasil, Ricardo Lísias fez circular por e-mail, em uma lista de “admiradores de literatura”, uma carta de resposta a uma suposta intimação judicial (que aparece anexada à carta com a assinatura dos advogados e da demandante). Depois da publicação de Divórcio, que relatava detalhes do fim do casamento do protagonista que mantém o mesmo nome do autor, sua obra foi questionada eticamente pela exposição da intimidade que pertence também à outra pessoa envolvida, já que havia rumores de que o autor tinha se separado recentemente. Um dos elementos que atravessa esses exemplos e tantos outros da literatura contemporânea parece ser o mecanismo da referencialidade, o que reverbera nos protocolos de leitura das obras.
Nesse cenário, talvez seja possível levantar a hipótese de que tais expressões literárias têm colocado em conflito a história contada com a ideia de verdade, o que vai de encontro à definição do ficcional como entendida na modernidade, em que a “pretensão de verdade e uso da ficção não estavam em contraste: os escritores descobriram que a validade geral do romance dependia da natureza explicitamente fictícia de seus detalhes”, como afirma a crítica inglesa Catherine Gallagher no ensaio intitulado “Ficção”.
O que estou tentando dizer nessa breve reflexão é que a natureza de muito do que ainda é chamado de ficção hoje tem requerido do leitor um exercício que frequentemente faz minar o conhecido pacto ficcional – que nos faz aceitar o texto literário como internamente coerente e verossímil, independente de uma referencialidade externa – já que traz à tona elementos que forçam o textual na direção de um “fora” do texto.
No entanto, por mais que o referido pacto se apresente de outra maneira (ou até inexista do modo como tradicionalmente o conhecemos) em um bom número de exemplos da literatura contemporânea, ainda nos falta uma ancoragem teórica consolidada para analisarmos o fenômeno, e nesse lugar reside a sensação de insuficiência à qual me referi no início do post. Usar o termo ficção para obras que fraturam o perímetro da autonomia estética ainda é uma confortável saída, embora saibamos que é menos frutífero nos debruçarmos sobre a aplicação da terminologia, do que problematizar a questão e tentar renovar as chaves de leitura.
*Este texto foi modificado em 23/02/2021
Oi, gostaria de fazer um esclarecimento: nunca fui notificado judicialmente por ninguém com esse nome como afirma o texto. Fui notificado judicialmente por duas vezes: uma pela Procuradoria Geral da República, por falsificação de documento no caso da série “Delegado Tobias”, e outra pelo ex-deputado federal Eduardo Cunha pelo livro “Diário da cadeia”. Nunca respondi pela acusação de que fala o texto. A propósito, notificações judiciais são públicas, podem ser achadas nos devidos sites do poder judiciário. Um abraço.
Caro Lísias, obrigada pelo comentário. Acredito que sua observação a respeito do post confirma o modo como as fronteiras entre a realidade e a ficção se embaralham em sua obra (e em muitas outras narrativas contemporâneas). O fato de “Sobre a arte e o amor” brincar com documentos oficiais, assim como também outros textos seus, pode sugerir uma revisão do pacto ficcional que estabelecemos com as narrativas literárias desde o século XVIII e, se for assim, acaba impactando também as especulações críticas e os modos como o objeto é discutido. Abraço.
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O linguista John R. Searle escreveu a melhor abordagem da ficção como algo que não se opõe ao fato real. O texto dele é definitivo a respeito, porque supera as tentativas de opor ficção e verdade, ou de considerar como ficcionais as narrativas de fatos não reais. O fato de a ficção, para ele, ser pacto de leitura pode ser estendido ao modo como qualquer narrativa pode ser configurada como romance. É estranho ver ainda críticos classificando romances de Modiano e de Coetzee como historiografia ou como autobiografia, quando são romances que narram fatos reais. Ninguém chama filmes que contam vidas de pessoas reais de documentários ou não vê esculturas ou pinturas que copiam o real como representação estética. É algo que somente a narrativa literária ainda carrega, como um anacronismo teórico, porque o artista escritor já o superou.