Sobre Fanfictions e as linhas sem palavras

Por André Neves

Em janeiro desse ano postei um texto com o título de Fanfiction e autorias fluidas, cuja escrita discutia o descentramento da autoria e a possibilidade de emergência de uma obra criada coletivamente nas redes sociais.
No processo de busca e de compreensão das formas, da estética e das narrativas contemporâneas existem possibilidades diversas de nos depararmos e nos surpreendermos com múltiplos deslocamentos estéticos que nos interpelam e apelam para outra reflexão. Deparei-me, por acaso, com uma forma de construção de narrativas e de apropriação que não diverge (ou pouco diverge) das fanfictions e causa certo desassossego no campo teórico e epistemológico.
Compro livros de forma instintiva e, por acaso, adquiri um exemplar de Sujeito oculto, de Cristiane Costa, um livro que me surpreendeu por ser uma escrita que atravessa a fronteira da teoria da “literatura”, da estética e da própria “ficção”, descentrando e reformulando a própria estética e a forma de narrar.
Minhas primeiras leituras do livro foram sobre o próprio objeto livro, iniciei uma leitura táctil e imagética (capa, figuras fontes de letras, etc.), deslizei os dedos e os olhos sobre as páginas e ao me deparar com o segundo capítulo em que as palavras, ao longo de muitas páginas, aparecem cobertar por traços pretos, questionei: “Onde está a segunda parte do livro?”, “O que houve com essa impressão?”, “o que significam essas linhas escuras?”.
O texto de Cristiane Costa induz à reflexão sobre uma questão que se encontra na orelha do livro: “é possível ser, ao mesmo tempo original e cópia?”. Parte de seu texto foi construído utilizando as teclas CTRL+ C e CTRL+V do computador, ou seja, a partir do recorta e cola de palavras e frases retiradas de outros livros, num processo de montagem.
A resenha apresentada na orelha do livro explicita que “Sujeito Oculto cria um jogo de espelhos infinitamente recuado em que o narrador nunca é quem parece ser” e afirma que “A trama tem todos os elementos de um romance clássico: amor, ódio, traição, ambição, personagens marcantes […] com o tempo, percebe-se que o enredo tradicional e a forma inovadora tratam de temas correlatos: filiação, herança e apropriação”.
O texto de Cristiane nos faz pensar sobre “o que é narrar” e sobre como as formas de narrativas podem deslocar conceitos. Sua forma de escrita aposta em um método consciente que traça uma curva sinuosa nos “caminhos retos” do modo de se fazer literatura.
Retomo aqui o parágrafo inicial e reafirmo que em meu primeiro encontro com Sujeito Oculto fui tentado a comparar sua estrutura narrativa e sua estética com outras formas do fazer literário e percebi que é possível aproximar a obra das fanfictions por colocar em crise a autoria como uma “instituição” e suscitar o questionamento sobre o estatuto do direito do autor.
As narrativas contemporâneas, portanto, surgem num contexto de apropriação da multicultura e apontam para um deslocamento e ressignificação de conteúdo narrado por um indivíduo para um conteúdo compartilhado ou de autoria partilhada. Tanto nas fics, quanto em Sujeito Oculto é possível notar esse deslocamento.
Heloisa Buarque de Holanda comentando a obra, em especial o segundo capítulo que apresenta para o leitor várias páginas em que as palavras aparecem cobertas por tarjas pretas, coloca a seguinte provocação: “Resta uma dúvida: o que estaria escrito no segundo capítulo que foi indevidamente roubado do leitor?”.
É possível que essas narrativas estejam “roubando” também as certezas da crítica e da literatura como instituições. Será que poderíamos falar então em uma literatura pós-autônoma, nos termos da crítica argentina Josefina Ludmer? . Ela tem definido a literatura pós-autônoma como aquela que sai do cerco literário, onde estava encerrada a princípios literários, como os do modernismo. A literatura trata de ser outra coisa e pode ser também uma investigação histórica, uma biografia, uma crônica, um testemunho. Ou talvez apenas brincar com a noção de texto original e desconstrui-lo, desmontá-lo. Nesse sentido, os traços que cobrem as palavras do capitulo 2 do livro de Cristiane Costa têm muito mais a dizer e pouco a ocultar.

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