Por Luciene Azevedo
Créditos da Imagem: Harry Callahan. Chicago (1955)
A pergunta implica uma reflexão sobre o papel e a importância da literatura hoje. Recebendo todo semestre alunos que ingressam nos cursos de Letras, costumo perguntar quantas pessoas do círculo de relações deles podem ser consideradas leitores e leitoras de obras que, apesar da elasticidade do termo, possam ser chamadas de literárias. O silêncio que recebo em resposta não deixa de provocar certa melancolia, mas também é um ponto de partida para refazer um percurso da história do termo literatura na era moderna, no final do século XVIII, quando diante da autonomia da arte soava injustificável questionar sua importância social.
Peter Sloterdijk. Em seu Regras para o parque humano, lança mão de uma série de imagens para evocar o panorama de constituição do que chama de humanitas ou “a comunicação propiciadora de amizade realizada à distância por meio da escrita”. Mencionando o escritor romântico Jean Paul que comparou os livros a cartas dirigidas a amigos, Sloterdijk sugere que é a notável receptividade dos romanos aos textos gregos a responsável por dar início a uma tradição humanista que reconhece na literatura um convite feito pelos livros a um círculo de destinatários que “descobrem, por meio de leituras canônicas, seu amor comum por remetentes inspiradores”, afirma ironicamente o filósofo. Tratando o humanismo como a “fantasia de uma seita ou clube”, Sloterdijk acompanha seu recrudescimento e sua transformação programática até o momento em que nos séculos XIX e XX “o padrão da sociedade literária ampliou-se para norma da sociedade política”. Todos conhecemos bem essa história. Apesar da decepção que se seguiu ao entusiasmo com o projeto iluminista, a literatura era entendida como uma saída fundamental ao embrutecimento provocado pelo naufrágio dos ideais que nortearam a Revolução Francesa ou como assevera Schiller: “para resolver na prática o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade”.
“Essa época parece hoje irremediavelmente esgotada”, afirma Sloterdijk, e sugere que esse esgotamento está relacionado ao modo como repensamos nossa maneira de ser e estar no mundo, as artes, a política.
A pergunta que dá título a esse post é claramente inspirada na provocação de Jacques Rancière (2007) que tematizando a relação entre arte e resistência se pergunta: “será que a arte resiste a alguma coisa?” Pensando na relação entre a arte e a política, o filósofo francês defende que os pressupostos da modernidade continuam válidos para pensar a arte hoje e se algo deve ser salvo do panorama nada otimista traçado por Sloterdijk, esse algo é a autonomia artística. Pois para Rancière, “A arte é política”, à sua maneira, dentro da esfera autônoma que lhe assegura uma espécie de resistência independente da ideia de política e por isso pode asseverar convicto que “A resistência da obra não é o socorro que a arte presta à política”. Na visão do filósofo, o que chama de “confusão ética” se impõe equivocadamente em nome da resistência que a arte pode oferecer, pois os produtos que identificamos como arte se inscrevem sobre o “paradoxo da resistência sem resistência”, numa “tensão irresolvida”.
Nesse sentido, não deixa de ser curioso o fato de que, falar em pós-autonomia, e me refiro aqui ao texto-manifesto de Josefina Ludmer, remeta à perda dessa resistência como elemento caracterizador da condição autônoma da arte, pois na visão da crítica argentina a literatura pós-autônoma “perderia o poder crítico, emancipador e até subversivo que a autonomia atribuiu à literatura como política própria”.
As duas posições parecem emblemáticas do impasse sobre a condição da arte hoje, pois ainda que se considere a oposição entre as conclusões de Rancière (que defende a manutenção da autonomia como princípio de resistência da arte) e de Ludmer (que afirma que a transformação do que entendemos por arte, por literatura, implica uma condição que supera o momento autônomo e mina sua capacidade de resistência, ao menos nos termos em que a compreendemos na modernidade, nos termos em que a argentina a descreve) é uma certa ideia consensual do que identificamos ao longo de toda a modernidade como literatura que é colocada em xeque.
Mas se não é possível discordar de Sloterdijk quando afirma que é só marginalmente, como uma forma de “subcultura sui generis” que a literatura importa, isso talvez não signifique capitular diante da possibilidade de resistência do literário, pois talvez seja possível apostar que a discussão sobre a autonomia ou a pós-autonomia implique em uma reconfiguração dos modos críticos de leitura dos produtos estéticos do presente a fim de que se torne possível reimaginar novas formas de resistência para a literatura hoje.