O eu, a arte, a morte

Por Davi Lara

post davi nov

Créditos da Imagem: Jed Matin

No semestre passado dei um importante passo na direção da defesa de minha tese realizando meu exame de qualificação, que foi ótimo e me deu muito o que pensar. E enquanto decidia o que ia fazer com as observações feitas pela banca, para deixar as ideias se assentarem, me permiti um período de leitura ociosa que dediquei quase que exclusivamente a autores contemporâneos. Entre as melhores surpresas que tive, uma das experiências de leitura mais intensas me foi proporcionada pelo autor francês Michel Houellebecq. Já o conhecia por causa dos tabloides em que ele sempre aparece e que se multiplicaram por ocasião do lançamento do seu último livro, Submissão, de 2015. Mas confesso que não sabia muito o que esperar da sua literatura, propriamente dita. Aliás, se me é permitida a observação, esse é um quadro comum em se tratando de autores contemporâneos, mesmo os mais famosos, como Houellebecq, cuja fama se baseia em grande medida em seu pendor polemista. Seja como for, o livro que escolhi para me iniciar na obra do autor francês não foi Submissão, mas um livro anterior com um título meio vago, meio instigante: O Mapa e o Território (2010).

O livro acompanha a trajetória de Jed Martin, um artista deslocado que se dedica a projetos bastante peculiares, que se sucedem uns aos outros, como fotografar objetos industrializados (centenas de fotografias dos mais variados artefatos industriais), fotografar mapas franceses da marca Michelin ou pintar quadros consagrados a profissões, formando um grande painel das ocupações dos homens e mulheres em nossa sociedade. O romance (a primeira metade dele, pelo menos; e o fim da segunda metade também) se constrói como uma espécie de biografia artística de Jed Martin, acompanhando não apenas seu processo solitário de criação, como os meandros objetivos e mais ou menos fortuitos que constroem sua reputação artística. Como os leitores do blog talvez já saibam, eu me interesso pela presença da arte na literatura contemporânea. Só por isso, este livro já proporcionou uma boa lenha pra essa minha tara. Não bastasse isso, ele traz outro elemento que muito me interessa: a presença do autor nas narrativas atuais.

Em O Mapa e o Território, o autor aparece de uma maneira um pouco distinta do que acontece na autoficção (ou, ao menos, no que eu entendo como sendo autoficção). Ele é apenas um personagem do livro, sem que a voz do personagem se confunda com a voz do narrador impessoal (heterodiegético, diriam alguns). Com o mesmo nome do autor real, Michel Houellebecq aparece na trama como um escritor contratado por Jed Martin para escrever o catálogo de sua exposição de pinturas e desperta no artista um sentimento muito próximo da amizade. Mais do que apenas se autorrepresentar, o que mais chama atenção é o modo de autorrepresentação escolhido pelo premiado escritor francês. O Houellebecq ficcional é um misantropo amargurado e alcoólatra, que vive sozinho com seu cão e suas muitas garrafas de vinhos.

É intrigante ver como alguns escritores contemporâneos, escolhendo se autorrepresentar, se autofigurar ou se autoficcionalizar (nem sempre me é muito clara a diferença entre essas três ações), deliberam fazer uma má figura de si próprios. Houellebecq, no entanto, vai além. Não satisfeito em fazer um autorretrato como um homem consumido por uma obsessão ardente e autodestrutiva (o próprio Jed Martin faz um retrato do seu quase-amigo Houellebecq em que se destaca seu olhar febril), não satisfeito com isso, resolve perpetrar contra sua persona ficcional o mais cruel dos destinos que um autor pode conceder a um personagem. Num momento em que o livro dá uma guinada, saindo das páginas culturais para a seção policial, Houellebecq, o autor, narra com vagar luxurioso o assassinato de Houellebecq, o personagem. Decapitado e com o corpo todo estripado em pequenos pedaços de carne espalhados no chão da sala de estar de sua casa no interior da França.

É Jed Martin que, convidado pela polícia a ajudar no caso, faz a relação do assassinato de Hoellebecq com a arte. Sem saber do que se tratava, observa que as fotos da cena do crime se pareciam com uma imitação vulgar de Pollock… Aqui, o tema da arte contemporânea e o mote da inscrição do autor se unem. E isso graças a um terceiro elemento que tem me interessado cada dia mais: a união, nos romances contemporâneos, da violência com a arte. Ou, mais especificamente, a narração da arte como um ofício perigoso, quase sempre relacionada a atos de violência extrema.

Esse tema, inclusive, apareceu brevemente num post recente do blog em que mencionei o caso do pintor nova-iorquino Edwin Jhons (um personagem da galeria do romanção 2666, de Roberto Bolaño) que decepa sua mão para incorporá-la num quadro. Neste mesmo post, cito um artigo do crítico de arte cubano Iván de la Nuez, “Cuando el arte mata”, que fala justamente sobre essa união mórbida da arte com a morte na literatura contemporânea. Lá está disponível, para quem estiver interessado, uma pequena galeria de artistas desajustados. Aqui, no caso de Houellebecq, o que eu gostaria de destacar é o triângulo (não diria amoroso, mas certamente prazeroso, esteticamente) entre a arte, a violência e a autorrepresentação autoral. Três motes proeminentes das narrativas contemporâneas, que são manejados de modo magistral neste romance disparador uma série de reflexões sobre a condição do artista frente à sociedade contemporânea e sobre o frágil destino do homem, que luta com seus mapas, sua indústria, suas profissões, enfim, com todas as ferramentas que compõem a trama quimérica da civilização, contra a natureza implacável que avança sobre nós e nos lembra, a cada instante que passa, da inevitabilidade da morte.

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