Por Larissa Nakamura
Se a profissionalização do escritor nos dias atuais incorpora novas discussões e é permeada por adversidades encontradas no campo literário, não menos relevante é apresentar seu desenvolvimento no Brasil. Se consideramos um breve panorama do contexto cultural dos anos 70/80, encontraremos aí, nesse momento, algumas mudanças responsáveis pelo início da institucionalização de um espaço para as artes no país. É disso que se encarrega a obra Literatura e vida literária, publicada em 1985 e escrita por Flora Süssekind.
A censura é um ponto crucial discutido pela autora que a problematiza ao longo da primeira parte do livro, entendendo que não se deve analisá-la sob uma perspectiva unilateral e segundo os preceitos do senso comum, principalmente porque geralmente ela é pensada como um bloco rígido e altamente polarizado; dessa forma, segundo Süssekind, é importante observar que:
“[…] a censura não foi nem a única, nem a mais eficiente estratégia adotada pelos governos militares no campo da cultura depois de 1964. Assim como no plano estritamente político não se pode falar destas duas décadas como um todo monolítico, também a estratégia cultural não se manteve idêntica.” (SÜSSEKIND, 1985, p.12)
As decisões tomadas durante os governos militares relativas à cultura serão periodizadas em três momentos particulares. O primeiro período – de 1964 a 1968- permitia uma produção cultural engajada das esquerdas, desde que não incitasse as camadas populares e realizasse uma espécie de protesto “espelho”, cuja recepção eram as próprias esquerdas politizadas. As redes de comunicação de massa foram aprimoradas e incorporadas ao cotidiano popular, como o rádio e, principalmente, a televisão. A estética do espetáculo, consequentemente, ganhava força enquanto estratégia ditatorial de controle social, em que volumosos incentivos às indústrias culturais propiciavam uma vasta produção, caso inédito no país até então.
O segundo momento ocorre a partir da instauração do AI-5, em 1968, anos marcados por uma estratégia altamente coercitiva e de virada política de parte da população contestadora: a partir de um coeso movimento de pressão governamental, são agora os universitários que lançam mão do grito insubmisso juntamente aos artistas e intelectuais. Educada e politizada a camada populacional estudantil pela rica produção cultural incentivada até o AI-5, mudam-se as estratégias governamentais. A política nacional da ditadura, então, toma contornos repressores mais extremos, a exemplo da demissão e perseguição de professores, editores, funcionários públicos, produtores culturais e da presença de censores à espreita das produções culturais e mass media.
Com a Política Nacional de Cultura (PNC), instaurada em 1975, novos posicionamentos governamentais tomam forma no país, caracterizando o terceiro período de transformações. Esse programa político validou oficialmente a intervenção estatal no setor cultural, fixando esta instância como estandarte para o progresso e desenvolvimento da nação. Mediante severo controle e orientação dos desejáveis percursos culturais a serem seguidos, múltiplos dispositivos de intervenção, vigilância e punição foram estabelecidos pelos militares a fim de adequar as produções artísticas realizadas aos ditames do governo. Curioso é o dado que nos fornece Süssekind ao afirmar que:
“No que se refere aos livros, é interessante notar que foi sobretudo a partir de 1975 que as restrições se tornaram mais rigorosas. É possível apontar, ao menos, duas explicações para este súbito interesse da censura. Como assinalam em artigo de 1979 Marcos Augusto Gonçalves e Heloisa Buarque de Hollanda, data justamente de 1975 um certo boom editorial no país. Conquista de mercado, divulgação de novos autores, interesse pela produção nacional, lucros editoriais maiores: estas algumas características do boom. E ampliando-se o interesse pela literatura, amplia-se também a ação da cultura.”
Como se nota, é principalmente a partir de meados dos anos 70 que começa a se delinear o processo de industrialização da cultura e o fortalecimento do mercado editorial interno brasileiro em concomitância com o momento mais duro da censura ditatorial. Seja de modo a desarmar a arte de protesto da resistência, adequar os trabalhos ao que se entendia como “cultura oficial” ou mesmo, e não menos relevante, conformar a criação artístico-cultural aos moldes do capitalismo, o Estado assumiu o papel de mecenas da cultura nacional.
O Estado também atuou promovendo “[…] incentivo, via concursos, prêmios ou co-edições, à produção literária. E neste caso não se trata de retirar textos do mercado, mas até de facilitar sua edição e circulação”, observa Süssekind, assegurando a relação com a lógica mercadológica numa tentativa de controle político, social, ideológico do imaginário nacional. Tais dispositivos políticos acabaram por promover o fortalecimento dos mecanismos de industrialização no âmbito do mercado de bens culturais, fomentando o parque editorial brasileiro. De modo geral, o que se nota a partir da introdução da PNC é que esta: “[…] incentiva[va] por meio de subvenções, ao mesmo tempo que coibia com a censura, reforça[ndo] a necessidade de organização da cultura em moldes empresariais, em que a profissionalização e a conquista do mercado são pontos cruciais.”, como afirma outra estudiosa do período, Tânia Pellegrini.
Ainda que seja possível notar que em Literatura e vida literária a autora começava a dar conta dos efeitos de um passado recente que, aos poucos, modificava a condição de escritor brasileiro nas últimas décadas do século XX, o livro não esmiuça a ideia de escritor profissional, mas acaba por proporcionar um painel político, histórico e cultural sobre as condições que oportunizaram o surgimento de tal figura.
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Um breve panorama do contexto cultural dos anos 70/80, onde aconteceram mudanças responsáveis pelo início da institucionalização de um espaço para as artes no país. Período do surgimento do conceito distorcido de CULTURA É MERCADO, entre outros. É disso que se encarrega a obra Literatura e vida literária, publicada em 1985 e escrita por Flora Süssekind.
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