Por Nívia Maria Santos Silva
“[…] ao fim da lida/a morte que me entrava pelos pés,/ainda que eu me arrastasse até a avenida,//iria me alcançar […]
(TRAVESSIAS, BRUNO TOLENTINO)
No dia 27 de junho de 2007, o jornal O Globo e outros grandes jornais brasileiros, como Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, noticiavam a morte do poeta e tradutor Bruno Tolentino. Internado no Hospital Emílio Ribas, ele faleceu numa manhã de quarta-feira. Causa mortis: falência múltipla dos órgãos. À época era um dos 10 finalistas do prêmio Jabuti, já havia ganhado outros dois, por As horas de Katharina, em 1995, e por O mundo como ideia, em 2003. As complicações trazidas pela Síndrome da Imunodeficiência Adquirida não permitiu que ele vivesse o suficiente para ir receber o terceiro Jabuti pelo seu livro A imitação do amanhecer.
Completados 10 anos de sua morte sem grandes alardes ou repercussões na grande imprensa, a editora Mondrongo lançou em sua homenagem a Série Katharina, numa referência ao livro que marcou sua reestreia no campo literário brasileiro, em 1994, o citado As horas de Katharina. A série se iniciou com dois livros: Auto da romaria, de João Filho (Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional, 2015, pelo livro A dimensão necessária, Mondrongo, 2014) e Natal de Herodes, de Wladimir Saldanha (semifinalista do Prêmio Oceanos, 2016, pela coletânea de poemas Cacau Inventado, Mondrongo, 2015).
Esse é mais um empreendimento editorial que vem se somar à reedição ampliada e comentada lançada pela Record, em 2010, do “Livro de Horas” de Tolentino, acrescido da peça inédita A andorinha, ou: a cilada de Deus, e mais recentemente à reedição comentada de A balada do Cárcere em 2016, como podemos ver num post anterior de “Um projeto editorial para Bruno Tolentino”. Se as segundas edições lançadas pela Record trazem Tolentino de volta ao catálogo das livrarias, a Série Katharina da editora Mondrongo, por sua vez, aponta para autores contemporâneos tributários da poesia de Tolentino, poesia esta que em suas obras não surge apenas enquanto ressonância, mas também enquanto deferência. Por sua forma, conteúdo e temas, é possível dizer que neles se encontram resíduos da Lição de modelagem tolentiniana.
Wladimir, mais atraído pela lírica tolentiniana, em um de seus poemas chega a admitir Tolentino como “pai poeta” (“O nariz de meu pai poeta”) e usa como epígrafe, no seu “Responsório do silêncio”, os versos “te juro que o verbo amar/só Deus conjuga contigo”, de um dos livros mais líricos de Tolentino, A balada do cárcere. João, por sua vez, mais motivado pelo Tolentino metafísico, apresenta, mesmo antes de Auto da romaria, como epígrafe de seu A dimensão necessária, um trecho retirado de “Do purovisibilista”, um dos ensaios que introduzem o livro O mundo como ideia, berço principal da “poesia pensadeira” de Tolentino: “Porque a única questão em matéria de arte, como em toda emanação do tortuoso espírito humano, é sempre metafísica”. Afora as escolhas opostas, um pelo Tolentino lírico; outro pelo metafísico, ambos possuem poemas perpassados pelo pensamento cristão de base Católica, outro traço cultivado por Tolentino, mesmo à revelia de sua “hipocondria cosmológica”, como disse Chris Miller.
Num momento em que se discute a pós-autonomia (LUDMER, 2007) e a inespecificidade das obras de arte (GARRAMUÑO, 2014), no qual muito se fala sobre o fragmentado e o disforme, da obra ainda em preparação, tanto Wladimir quanto João têm em comum a prática da forma fixa, deixando quadras (“Hipólito, Teramenos”), terzas (“São Francisco”), sonetilhos (“Dois reis”) e sonetos (“Nosso Senhor dos passos”) povoarem seus livros, frequentados também por uma preocupação métrica, rítmica e rimática sem nenhum receio de parecerem anacrônicos. Seus livros apresentam, à moda de Tolentino, início, meio e fim, concebidos a partir de uma temática que perpassa e une cada um de seus poemas, tornando-os um todo organizado, pisado e repisado ao longo de anos. Os poemas dão forma à romaria do Rio São Francisco, que acompanha as memórias de João, e à ausência do pai, presente em Wladimir.
A Série Katharina contará ainda com novos lançamentos. Se por um lado, as publicações trazem poetas-leitores de Tolentino ao cenário poético brasileiro, por outro também faz ecoar uma poética muito próxima da de Tolentino, apresentando-a, mesmo que indiretamente, a leitores que ainda não o conheciam, trazendo Tolentino à tona, impedindo em alguma medida a sua morte.
“tornei-me o que ia ser… Virei talvez
um poeta, ou fiquei de todo louco;
num caso como noutro, ‘Ora (direis)
de que serviu?’ Não sei. Sei que por pouco
não chego inteiro onde cheguei em vão.
Mas ‘ora’ digo eu agora — rouco
de entoar e entoar meu cantochão,
minha ranheta, inútil cantilena —
valeu a travessia! Se a versão
em terça rima não valeu a pena,
sintam-se livres, fiquem à vontade
para esquecer-me, e a toda aquela cena,
minha curta visão da eternidade…”
(TRAVESSIAS, BRUNO TOLENTINO)
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