Ensaiando o romance

Por Fernanda Vasconcelos

Robert Morris Observatory 1971

Créditos da Imagem: Observatory (1971), de Robert Morris.

            Aqui América Latina: Uma especulação (2013), escrito por Josefina Ludmer, é um instigante livro crítico-teórico sobre a literatura contemporânea. Como o título aponta, se propõe a especular sobre as mudanças encontradas no contexto contemporâneo que atravessam a ficção atual. Em seu livro, Ludmer aposta em uma tentativa de aproximação aos “gêneros do presente” selecionando duas categorias gerais para serem exploradas: o tempo e o território. O formato do diário lhe serviu para organizar as impressões e reflexões sobre “Temporalidades” diversas experimentadas em seu cotidiano de leituras em Buenos Aires ao longo de um ano. Ludmer comenta que lia jornais e assistia à televisão (outros “gêneros do presente”) como um exercício diário que lhe serviu como meio para captar, nessas linguagens, as ânsias de um imaginário público que parece indicar, ainda que difusos, mecanismos de ordenações outras para a relação realidade/ficção no seu cotidiano.

Na parte intitulada “Territórios” encontramos proposições de leitura do que a crítica denomina de “literatura pós-autônoma”, colocando em xeque características fundamentais do que entendemos por literário desde o século XVIII, ao apostar que estamos vivendo transformações na esfera do que chama de “imaginação pública”, que afetam o lugar e o valor da literatura no presente.

Partindo destas reflexões, acreditamos que a maneira como Ludmer caracteriza a literatura pós-autônoma (redefinição das fronteiras entre ficção e realidade,  questionamento da autonomia e da ideia de campo literário) é pertinente para pensar a condição do romance contemporâneo, seu vigor.

A tão mencionada “instabilidade” do gênero, que pode ser percebida desde o seu surgimento, é radicalizada quando seus limites são colocados em questão atualmente. E essa característica flexível parece ser bem-vinda, se aceitamos com Ludmer que as possibilidades narrativas estão em aberto, gerando um deslizamento de fronteiras que permite um trânsito entre o dentro e o fora da literatura, redirecionando a atenção crítica para uma zona porosa, para além do entorno formal do gênero.

Comentei em meu último post sobre o livro de Karl Ove Knausgård, A morte do pai (2015), como a obra poderia ser tomada como um exemplo, entre tantos do contemporâneo, em que o romance “conversa” com as artes. Aí, em momentos reflexivos do narrador, quase ensaísticos, encontramos a problematização da própria escrita e um direcionamento estético: a banalidade do cotidiano protagonizada pelo narrador poderia ser tomada como resposta a uma longa história do próprio novel, que já dura, pelo menos,  três séculos. Acreditamos, assim, que o narrador usufrui do tom ensaístico em suas reflexões oferecendo dicas e negociando trajetórias de leituras com o leitor.

O que queremos dizer é que, em alguns momentos, essas reflexões parecem adquirir densidade textual enquanto procedimento, sobressaindo-se no corpo do romance, induzindo o leitor a notar certas características do romance, inclusive a clave tateante que provoca a percepção do leitor, assegurando-lhe uma fruição ao longo da leitura, como observamos no post anterior. Desse modo, o romance se aproxima de gêneros não ficcionais de maneira produtiva, apostando em uma estética que se direciona à tensão/fusão de materiais e conceitos heterogêneos e improváveis de serem agrupados. E, muitas vezes, esses imprevistos são “extraídos” do cotidiano mais comezinho.

Portanto, encontramos uma “estética da anotação” e uma apropriação do gênero do ensaio (não ficcional) pelo romance enquanto procedimento reflexivo, tateante Teríamos, então, o inacabado auxiliando na materialização de um esvaziamento de elementos estruturais da narrativa, embrulhados pela narrativa da banalidade cotidiana.

A pergunta que fica é: até que ponto essa marca ensaística interfere na forma da narrativa romanesca e no jogo com a expectativa do leitor por veracidade, estando, esta, relacionada com a inserção de um eu na banalidade de um cotidiano?

 

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