A biblioteca dentro do livro

Por Davi Lara

Math Monahan - Bookmark

Créditos da imagem: Math Mohanan, instalação Book(mark), disponível em: http://www.mathmonahan.com/bookmark.html 

Boa parte do interesse em torno da obra de Vila-Matas tem a ver com sua preferência pelos temas literários e seu pendor para retratar o universo dos livros, característica que lhe valeu o epiteto de “escritor de escritores”. Para o escritor argentino Rodrigo Fresán – autor de um artigo sobre o escritor espanhol intitulado justamente “El escritor de escritores” –, o epiteto não se limita a indicar a admiração que os colegas têm por ele: “en el caso de Vila-Matas, semejante definición, –que va anexando la de ‘escritor de lectores’– se hace todavía más justa y apropiada, porque Vila-Matas ha convertido literal y literariamente a los escritores (escritores verdaderos o falsos) en materia y material narrativo.De fato, os escritores, sejam eles reais ou fictícios, são figuras centrais no universo vilamatiano.

Basta lembrarmos algumas de suas obras para atestar isso. Em Histótria abreviada da literatura portátil (1985) conhecemos os bastidores de uma curiosa sociedade secreta de escritores da qual eram membros Tzara, Céline, Duchamp, Fitzgerald, dentre outros.  Doutor Pasavento (2005) conta a história de um escritor que se cansa da vida de entrevistas e conferências e decide desaparecer e assumir outra identidade. Já em Paris não tem fim (2003), a autobiografia inventada do autor, é a história do próprio Vila-Matas, ou melhor, do seu duplo autoficcional, que é contada. Em todos esses exemplos, o escritor está presente, mas não somente o escritor, como a própria literatura. Pois, se é verdade que Vila-Matas pode ser considerado um escritor de escritores, no sentido de que os escritores integram seu universo ficcional, me parece mais exato aquela outra expressão sugerida por Fresán, “escritor de leitores” ou, mais precisamente, “escritor de leitores literários”.

Sei que a expressão pode parecer redundante, já que todo escritor só é escritor em relação aos leitores de literatura. Talvez a redundância se resolva, ou pelo menos se torne mais inteligível, se circunscrevermos os leitores de Vila-Matas de acordo com a descrição que César Aira faz dos leitores de literatura, em oposição aos leitores de best-sellers, como aqueles que não se interessam por apenas um livro isolado, senão por toda uma biblioteca. Uma biblioteca composta por uma rede invisível que liga livros e autores da tradição da literatura mundial por meio de tramas imprevisíveis e sempre em movimento. Escreve Aira: “Se alguém lê, digamos, As asas da pomba, e gosta, o mais provável é que leia outros livros de Henry James, e quando terminar lerá suas cartas, prefácios, conferências, uma biografia, a de Leon Edel, por exemplo, daí passando aos contemporâneos de James, seus discípulos ou mestres, Flaubert, Turguéniev, The Ring and the Book, Proust … em círculos concêntricos que terminarão por abarcar a literatura toda.”

Outro autor argentino (já é o terceiro que eu cito nesse post), Jorge Luis Borges, já havia tratado dessa teia invisível que une os livros por meio da imagem da biblioteca de Babel. A biblioteca de Babel é um símbolo dessa abstração ou dessa quimera que é a literatura mundial, na qual todos os livros, reunidos por laços imprevisíveis, estão contidos. Creio que boa parte do encanto da literatura de Vila-Matas está no fato de ele ter trazido a biblioteca para dentro de seus livros. Em livros como Bartleby e companhia (2001) ou O Mal de Montano (2002) o escritor ocupa o centro, apenas como um dos componentes dessa biblioteca de autores e obras. O prazer que encontramos em ler a sucessão de impressões de leituras, perfis e comentários às obras e aos autores é correlato ao prazer do leitor perante a sua biblioteca pessoal, à soma de todos os livros que leu e os que ainda quer ler.

É por isso que, na estilização da biblioteca feita por Vila-Matas, a forma tradicional do romance é forçada a se modificar. Quando falamos sobre livros, não falamos em formas de narrativa, mas em textos dissertativos. Assim, muitos dos romances de Vila-Matas parece assimilar o ensaio como uma força motriz que se mistura e se confunde com a narrativa propriamente dita. E esse é uma das grandes ironias do procedimento vilamatiano: a partir da estilização da biblioteca ele faz um movimento duplo, que de um lado reifica a ideia de literatura, enquanto que, de outro, parece conduzi-la a seus limites.

 

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