​O romance e o comentário sobre as artes

Por Fernanda Vasconcelos

Créditos: Perimeters/Pavilions/Decoys(1978), de Mary Miss

Conforme afirmou Davi Lara em seu último post, uma aproximação entre a literatura e as artes plásticas/visuais tem se mostrado vigorosa em diversos romances publicados nos últimos anos. Trata-se de longos trechos, muitos deles escritos em primeira pessoa, nos quais o protagonista relata o contato com obras artísticas.

É interessante pensarmos nesse movimento, do literário rumo às artes, quase sempre presente em obras de caráter mais experimental, que é configurado na narrativa pelo amálgama de reflexão e fascínio do narrador diante das produções artísticas, muitas delas experimentais e com formas de difícil captura.

No caso do romance autobiográfico A morte do pai (2013), escrito por Karl Ove Knausgård, o contato do protagonista com as artes aparece em vários momentos ao longo do livro, seja via sua experiência como frequentador de museus evocando descrições e reflexões de alguns quadros específicos de Rembrandt, seja por meio da experiência mediada pela reprodução da obra em livros de arte, como ocorre quando entra em contato com as pinturas de Jonh Constable.

Comentando exemplos da arte no século XIX, fica explícito o arrebatamento de diante daquelas pinturas: “Tudo concentrado em instantes tão intensos que às vezes era difícil suportar”, afirma o narrador. Nesse trecho ensaístico, o protagonista lida com o indescritível de sua experiência com a arte em um âmbito íntimo sem parecer estar preocupado com fornecer esclarecimentos mais técnicos ou específicos para o leitor. É um relato pessoal, como uma conversa íntima consigo mesmo, uma reflexão do escritor com ele mesmo, na qual ele mostra estar lidando com o inexplicável da arte, mediado por suas impressões e sentimentos.

O escritor afirma que estava acostumado a estudar a história da arte e a analisar a arte, porém o mais importante seria escrever sobre a experiência de fruição da arte. O que em sua opinião representava um desafio, porque o forçaria a lidar com a impossibilidade de descrever ou narrar algo inexplicável. Evocando sua frequentação às galerias de arte, Knausgård parece querer reproduzir na escrita a liberdade experimental, reflexiva que desenvolveu como visitante dos espaços de exposição de arte, que, no entanto, nem de longe é caracterizada como uma atividade apaziguadora, já que esse exercício demandava “estar dentro da inexauribilidade” que aquelas obras lhe apresentavam.

Em seguida, o escritor tece um comentário sobre a arte contemporânea. Aí, o escritor ressalta que o que causara a experiência da inexauribilidade do estético diante de obras como as de Constable e Rembrandt, se esvaziou ou se torna irrelevante para os objetos artísticos enquadrados na categoria de arte contemporânea. Karl Ove reconhece que as representações naturalistas passaram a ser ingênuas e ultrapassadas, pois delas não restaram grande significados estéticos. Contudo, afirma não pode deixar de sentir nostalgia por aquelas pinturas, e que se é naquela direção que ele como escritor deveria ir, faltaria saber o caminho a tomar. Aí, a reflexão se interrompe e o romance volta ao relato das mais banais preocupações do cotidiano.

Acreditamos que essa reflexão pode servir para pensar a própria condição da narrativa de Karl Ove na literatura contemporânea. Pois ao se mostrar resistente à arte contemporânea e buscar abrir um caminho na direção de uma representação naturalista, tentando apreender um modo novo de contar dentro dessa representação, não poderíamos pensar que o autor ao voltar ao relato de suas trivialidades, não estaria já respondendo à nostalgia que diz sentir e, ao mesmo tempo,  tateando um outro caminho para sua narrativa?

O que quero sugerir que é talvez seja possível pensar o  próprio romance A morte do pai como a materialização do esvaziamento de uma certa concepção de arte literária, da forma do romance tal como o reconhecemos desde o século XVIII, em seu momento inaugural. E que essa transformação é dada a ver na narrativa de Karl Ove por meio da reflexão, quase ensaística, do autor sobre a própria arte e sua experiência de fruição.

O jogo que se estabelece, então, é o de uma aposta na experimentação que afeta a voz narrativa que pensa a arte e a literatura atuais e, simultaneamente, pensa a si próprio como autor, como fruidor e produtor, no movimento dessa reflexão, dando voz a um eu que volta a si mesmo, durante a escrita, convidando os leitores a se engajarem também nessa reflexão.

Publicidade

3 Respostas para “​O romance e o comentário sobre as artes

  1. Pingback: “Gêneros do presente”: o romance e o eu se ensaiam | Leituras contemporâneas - Narrativas do Século XXI

  2. Pingback: Ensaiando o romance | Leituras contemporâneas - Narrativas do Século XXI

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s