Por Luciene Azevedo
Leonilson, Truth, fiction
A literatura moderna consolidou-se como sinônimo de ficção e elegeu o romance como seu gênero por excelência. Questionar a autonomia literária, que fundou a ideia de modernidade literária, significa, por tabela, questionar a ideia de ficção e colocar em xeque a vitalidade do romance. É o que faz, por exemplo, David Shields, em seu Reality Hunger, por meio da defesa empenhada da superação das formas mais convencionais de narração ao afirmar que “os tipos de romances de que gosto são aqueles que não mantêm traços do romance”.
Mas seria possível pensar o “não literário” como um recomeço e não como um fim, tomar também um não romance como uma reinvenção do próprio gênero? Mas o que seria um não romance? La Novela Luminosa de Mario Levrero ou mesmo os notebooks do americano David Markson podem ainda ser catalogados como romances? Esses exemplos são marcados pelo que gostaria de chamar de uma “estética da anotação”, pois a inespecificidade formal deles (Romance? Ensaio? Diário?) está relacionada a um modo de exposição da fatura de confecção do próprio relato e aposto que esse movimento expande a literatura na direção de outras artes e a torna permeável à incorporação de formas não-literárias.
O que estou sugerindo é que podemos pensar na anotação como um procedimento provocador de uma inespecificidade (ficção-não ficção, romance-não romance, diário, ensaio) marcada por “negociações fronteiriças… entre o produto e o resíduo”, como diz Bourriaud a respeito dos produtos artísticos contemporâneos. É essa ambiguidade do que parece inacabado, mas já é obra, que cria a sensação do inespecífico, e franqueia a possibilidade de pensar no processo de formação de (outras) formas para o romance.
A anotação franqueia a expansão da forma romanesca na direção do não-literário seja pela aproximação da narrativa à dicção ensaística, seja pela incorporação do comentário ordinário, prosaico que trabalha para minar a construção dos efeitos de ficção. Nesse sentido, o modo da anotação é um investimento “no real cotidiano, nas pessoas, em tudo aquilo que acontece na vida”, como apostava Barthes. Em lugar da caracterização densa dos personagens, da continuidade tramada dos fatos, nos (não) romances-anotação encontramos a encenação do eu autoral e a valorização do incidental, do episódico, formando pequenos grumos narrativos, que valorizam o aleatório em detrimento da coerência sequencial e infiltram a desconfiança sobre o caráter literário da narração.
Barthes apostava em um “romanesco sem romance”. Sua ideia de romanesco nasce das aproximações entre o romance e o ensaio, da ficção imbricada ao caráter de exposição refletida do pensamento, da aproximação entre a vida e a obra. Poderíamos pensar que o que Barthes chama de romanesco é uma espécie de romance que expõe sua preparação e por isso também podemos entender porque deu tanta atenção à anotação.
Também me parece possível explorar a articulação entre o aceno que as narrativas contemporâneas fazem na direção de formas não literárias (diários, ensaio e anotação) e a frequência com os autores têm se transformado em personagens de si mesmos, pois não é raro encontrarmos em obras nas quais vemos encenado um informe biográfico completo sobre o autor também uma forma narrativa que parece em preparação e que simula uma conversa ensaiada. Essa relação entre encenação de si e performance narrativa está presente em muitas das narrativas do século XXI.
Luciene, é interessante como os questionamentos levantados pelo seu texto acerca do romance/não-romance nos apontam para mobilidade do gênero romanesco e, por extensão, acabam revelando a própria desestabilização do estatuto da literatura. Parece mesmo que a zona limítrofe entre romance e o não-romance está na própria tensão que existe entre o literário e o não-literário. Como de costume, seus textos são uma ocasião para a reflexão. O que determina o momento da transformação do “real cotidiano” em literatura? O ficcional é o que assegura o literário? O que garante esse caráter ficcional? Estamos num momento de exaustão/reinvenção das formas? Seu texto nos força lembrar que em termos de literatura não convém lidarmos com o absoluto.
Luciene, assim como Nívia, achei o seu o post bastante instigante. Me interesso especialmente pela articulação que vc faz entre o romance moderno com a ficção. Daí segue-se que, quando o romance contemporâneo, por meio do que você chama de estética da anotação (assim como outros recursos, como a citada encenação de si), rompe com a ideia de autonomia ficcional, a própria noção de romance fica abalada. Diante disso, gostaria de destacar para um questionamento que você faz no texto:
“Mas seria possível pensar o “não literário” como um recomeço e não como um fim, tomar também um não romance como uma reinvenção do próprio gênero?”
De modo geral, existe uma opinião subjacente a certas vertentes críticas que considera o não-literário uma ameaça à literatura. Deve-se a isso, talvez, o fato de haver entre os críticos tanta má vontade com, por exemplo, a autoficção, cuja morte ou esgotamento já foram anunciados algumas vezes vezes no decorrer da curta vida do neologismo, a despeito da sua vitalidade na agência de obras e discursos críticos. Por isso, creio que fazer como você faz, isto é, pensar a possibilidade do “não literário” enquanto um agente de transformação e revitalização da literatura (agora desliteraturizada), pode ser um caminho para se desenvolver a crítica para além dos lugares-comuns de um vocabulário ainda ligado ao modelo moderno de literatura. É claro que o desenvolvimento de um discurso crítico mais adequado ao contemporâneo não é tarefa simples, mas é certamente muito instigante.
Nívia e Davi, obrigada pela interlocução. Os termos novos podem lutar contra certa inconsistência, como a autoficção, mas também apontam para um desafio teórico de pensar uma transformação na maneira como entendemos o que chamamos de literatura. Não deixa de ser curioso pensar que em suas inúmeras “crises” a literatura sempre se aproxima do não literário. Foi assim com o surgimento do romance que se fingia de “verdade” e também com a ideia de factografia dos formalistas, no início do século XX, insurgindo-se contra o simbolismo russo. Por isso, Davi, acho que vale mesmo a pena pensar o início do romance no século XVIII numa perspectiva comparativa com o momento atual. Além disso, é curioso como têm aumentado as manifestações que querem dissociar a literatura da ficção: David Shields, Josefina Ludmer…Será possível uma literatura sem ficção??
Achei o texto e a discussão desdobrada nos comentários muito interessante. E sua última pergunta sobre a possibilidade de separação da literatura da ficção é bem provocativa. Como início de uma discussão, destacaria o trecho abaixo:
“Em lugar da caracterização densa dos personagens, da continuidade tramada dos fatos, nos (não) romances-anotação encontramos a encenação do eu autoral e a valorização do incidental, do episódico, formando pequenos grumos narrativos, que valorizam o aleatório em detrimento da coerência sequencial e infiltram a desconfiança sobre o caráter literário da narração.”
Ao correlacionar esse jogo com a expectativa do leitor com o questionamento da própria ficção, é possível vislumbrar um efeito importante de ser notado em muitas obras contemporâneas. E, como o material utilizado para dar corpo a esses grumos narrativos são de dicção ensaísta, podem “simular uma conversa ensaiada” com o leitor e mostram um “investimento ‘no real cotidiano, nas pessoas, em tudo aquilo que acontece na vida’” (com certeza, preciso ler Barthes), me pergunto se, em outros pontos do “romance”, o autor puxa com força o leitor que está distanciado da ficção, em meio a essa massa textual, para um lugar de fronte com a própria ficção. Então, que papel a ficção exerce dentro desses livros contaminados de vida cotidiana (tão próxima do leitor) e que ainda reivindicam o selo de romance? Será que os entornos da obra, agora sendo grande parte dela, se mostram autônomos? Também fiquei instigada com o possível efeito de real (não sei se estou usando bem o termo) possibilitada com a “estética da anotação”. Estes são alguns dos vários questionamentos que levantei durante a leitura do post. Esse texto é potente para discutir muitas das obras atuais.