Histórias de nomes próprios e escrevivências

Por Nivana Silva

ancestral-masks

“Ancestral masks”, de Samuel Akainyah

Lançado esse ano pela editora Malê, Histórias de leves enganos e parecenças é o mais novo livro de Conceição Evaristo. Nele, estão presentes nuances de mistério, traços de encantamento e elementos do insólito que perpassam os doze contos e a novela que compõem a obra, desvelando filiações com uma ancestralidade de matriz africana e afro-brasileira, além de deixarem consolidadas marcas da oralidade e da memória, individual e coletiva, características que podemos associar à assinatura autoral da escritora mineira.

As narrativas, em sua maioria, giram em torno de mulheres – crianças, moças ou mães – protagonistas de suas vivências, que contam e escutam histórias passadas de geração em geração, fazendo emergir o fantástico e o imprevisível a partir de uma mescla entre a tradição e o contemporâneo. Chama atenção o não tão sutil jogo entre os nomes próprios de algumas delas e seus respectivos enredos, a exemplo de Rosa Maria Rosa, do conto homônimo, cujas axilas gotejavam pétalas de flores; Fémina Jasmine, de “A menina e a gravata”, e sua imensa predileção, desde pequena, por essa peça do vestuário masculino, especialmente as de formato borboleta, que com ela “fazia profundos voos”; ou a personagem-mãe que dá título ao conto “Os guris de Dolores Feliciana”, fortemente abalada pela perda dos três filhos assassinados e, por isso, vertia lágrimas de sangue, aplacadas, em certa medida, pelo constante retorno e presença dos meninos. A brincadeira com as alcunhas acontece também em “Os pés do dançarino”, em que o rapaz Davenir, por ter ignorado suas origens quando ganha fama, “deu pela ausência dos pés” e precisava “fazer o caminho de volta”, profecia da Bisa, “a mais velha das velhas”.

Tal como a Bisa, a presença de mulheres sábias, vigorosas e disseminadoras de crenças e valores de suas culturas é recorrente na antologia e, talvez, tenha seu ponto alto em “Sabela”, última narrativa atravessada por leves enganos e parecenças. A novela apresenta histórias entrelaçadas a um acontecimento maior, um dilúvio – que, diga-se de passagem, não tem ancoragem bíblica, tampouco culmina com uma grande arca – previsto e, literalmente, sentido por uma sábia senhora-mãe, que dá nome a história, por sua vez reconstruída pela filha, também Sabela, e pelos sobreviventes da singular tragédia, na qual “grandes e pequenos se igualaram”.

Em “Sabela”, assim como nos contos “A moça de vestido amarelo”, “O sagrado pão dos filhos” e “Fios de ouro”, as narradoras recompõem, contam e revivem memórias, mitos e rituais, reafirmando tradições familiares femininas muito fortes e passando adiante suas escrevivências, ou seja (e em linhas gerais), “textos que nós mulheres e homens negros criamos” ¹, segundo definição de Conceição Evaristo. A palavra em itálico, presente como uma marca do trabalho teórico e literário da escritora mineira, pode ser associada, também, às histórias transmitidas pelas mulheres de sua família, fonte e fundamento para sua escrita, como relata em “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de  minha escrita” ².

Recentemente, na última edição da Flica, Evaristo diz ser possível pensar uma escrevivência marcada pela biografia das mulheres negras na sociedade brasileira, algo que está comprometido com o trabalho da ficção, com memórias ficcionalizadas. Inevitavelmente, encontramos esse registro em Histórias de leves enganos e parecenças, que não deixa de abordar questões ligadas à diáspora africana, às favelas do Rio de Janeiro, à fé e à natureza, sempre sob uma leveza onírica e imprevisível, mas sem deixar de agenciar um compromisso com a resistência e com a solidariedade feminina negra, afinal de contas, trata-se de construir uma assinatura por meio das escrevivências que não podem ser lidas, como afirma a própria Evaristo em seu blog, “como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”.

[1] Conforme a fala de Conceição Evaristo na Flica 2016, na mesa “As águas dos contrassonetos e os olhos da vândala insubmissão”.

[2] Texto disponível no blog da autora.

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2 Respostas para “Histórias de nomes próprios e escrevivências

  1. Oi, Nivana.
    Adorei muito o comentário que fez sobre o livro da Conceição Evaristo. Para quem, como eu, só a conhece através de seus poemas em “Cadernos Negros”, é importante reconhecer como ela vem acumulando experiência e notoriedade no campo artístico (e para além dele, claro) sem deixar de demonstrar seu profundo engajamento político, compromisso com as pautas das mulheres negras.
    A palavra não deixa de marcar um registro. E o que seria a poesia, a ficção aqui impressas que propõe a autora? Penso que o trabalho com a memória que por vezes aparece na sua escrita faz emergir seu ativismo, criando novas versões e imaginários, na busca pela pluralidade de identidades possíveis, em que experiências históricas e pessoais se cruzam.

    • Obrigada, Larissa. Concordo com você. Penso que o resgate da memória – seja por meio de um diálogo com a ancestralidade africana, seja trazendo à tona os rastros das tradições familiares (femininas, sobretudo) – é um registro importante para a marca autoral de Conceição Evaristo, cuja assinatura revela uma consciência que também compromete a sua escrita enquanto resistência ao legado das dominações patriarcais e escravocratas. Conforme ela mesma afirma no texto citado, o falar e o ouvir – e consequentemente o “escreviver”, eu diria – eram formas de defesa para as mulheres de sua geração, talvez a única. Sendo assim, acredito que sua ficção, mesmo quando aparece carregada da mais imprevisível e insólita narrativa, não deixa de se configurar como um lugar de autoafirmação e de comprometimento com o debate contemporâneo das questões mencionadas.

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