Por Débora Molina
Em um outro post meu, Ladrão que rouba ladrão, inicio com uma imagem bastante convencional à escrita literária: a figura do autor, solitário, em frente ao papel em branco, à espera de inspiração. Esse figuração da autoria, ainda muito presente no imaginário contemporâneo, pode ser pensada de forma diferente se consideramos o autor como uma espécie de gênio não-original, como afirma Marjorie Perloff. O escritor não original produz novas narrativas a partir da seleção, cópia e colagem de textos literários já existentes, técnica que já foi nomeada pelo também poeta Kenneth Goldsmith de “escrita não-criativa” ou escrita remix, baseada na operação de cut up.
É desta forma que o autor carioca Leonardo Villa-Forte e criador do blog MixLit – O Dj da literatura escreve sua literatura e pode ser pensado como um gênio não original. O blog é um projeto inspirado na técnica de sampler, recurso de edição e seleção de músicas utilizado por Djs, que resulta na composição de uma nova música a partir de fragmentos de outras. Segundo Villa-Forte, a ideia surgiu no momento em que lia cerca de 10 livros em conjunto, quando percebeu que alguns fragmentos de um livro, poderiam ter ligação com fragmentos de outros. Foi então, que teve a ideia de construir um blog na internet, para publicar seus textos: a partir da apropriação de fragmentos de textos literários alheios.
MixLit 62: Ainda hoje
Com um semblante consternado1, ela se inclinou, deu-me um beijo e murmurou:
“Você está com aquele seu olhar de órfão novamente.”2
“Não”3, eu disse, também pesando cuidadosamente.4
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1 Josué MONTELLO. O camarote vazio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.34.
2 Alain DE BOTTON. Ensaios de amor. Tradução de Fábio Fernandes. Rio de Janeiro/Rio Grande do Sul: Rocco/L&PM, 2001, p.107.
3 Machado de ASSIS. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Garnier, 1998, p.207.
4 Péter ESTERHÁZY. Os verbos auxiliares do coração. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.19.
Além do blog Mixlit, em 2014, Leonardo Villa-Forte, iniciou um projeto coletivo junto com Rodrigo Lopes chamado Paginário, uma espécie de mural construído com colagens de páginas de diferentes livros de diversificados autores, as páginas são enviadas por variadas pessoas e o remix literário é feito por meio do destaque de trechos na página em exposição.
No projeto Paginário, o texto literário é reinventado, recriado e ganha um outro formato: o mural, o que pode ser pensado como uma desterritorialização da forma como lemos e entendemos literatura. O leitor é também um pouco espectador, pois posta-se diante de um painel com diferentes recortes de textos em um espaço público que lhe oferece uma nova aventura muito diferente de outra figuração moderna da leitura associada à solidão e ao silêncio.
Em seu livro Pós produção, Nicolás Bourriaud entende que a produção artística contemporânea passa por um processo que o crítico nomeia de pós-produção. Bourriaud conclui que hoje os materiais artísticos não são mais elaborados através de uma matéria bruta, mas por meio dos materiais já existentes, já confeccionados. E, deste modo a palavra pós não atribui um teor negativo ao recurso, mas apenas uma aplicação de uma reelaboração, utilização, curadoria da matéria artística inscrita na história. Portanto, para o crítico, o produto artístico contemporâneo não se coloca como acabado “mas como um local de manobras, um portal, um gerador de atividades. Bricolam-se os produtos, navega-se em redes de signos, insere-se suas formas em linhas existentes”, afirma o crítico.
O procedimento de escrita não-criativa procura utilizar os produtos que já estão aí, em circulação. Neste processo o que importa mais é a criação a partir da curadoria e seleção e montagem destes materiais do que a invenção dada por uma gênio criador. O que parece bastante curioso é que a atuação do autor de escrita não-criativa coloca em xeque a condição da autoria entendida como gênio ao brincar com as palavras dos outros e criar uma nova forma de produzir Literatura.
Gênio Não-Original
Débora, seu texto é muitíssimo interessante para pensar a ideia do gênio não-original. Um assunto que muito me interessa. O agenciamento de textos e materiais para compor certa ideia e ou dicção literária. O seu texto me fez lembrar do livro de David Markson, “Isto não é um romance”; um romance-colagem, fragmentos e eventos fortuitos e aleatórios do cotidiano ao longo da história… Até o momento me parece a ideia mais radical para colocar em xeque a forma do romance e sua cartilha e aparatos conceituais duros como pedra. Também me fez recordar da trajetória de Ricardo Lísias, especialmente depois de “Divórcio” e “Sargento Tobias” e suas últimas performances (Já acompanhei a carreira do autor por um certo tempo, hoje acompanho menos devido ao tempo disponível). Para quem trabalha mais diretamente com este último, é interessante pensar sobre a mudança de sua trajetória como escritor. Desde o seu primeiro livro parece situado no terreno do paradoxo e das ambivalências. Quando escreveu o primeiro livro, “Coberto de Estrelas”, era o que podemos dizer um jovem problema, com poucos amigos, anarquista, um garoto problema, isso está na própria orelha do livro. Este mesmo jovem de poucos amigos e briguento, em certo sentido, escreve um livro demasiadamente humanista: um garoto de rua, sem um pedaço de chão pra dormir nem um papelão como travesseiro, procurando pedaços de pão para comer com café frio e ralo, tendo um graveto como lápis e um chão como caderno, sonhando e torcendo para que um dia as estrelas virem humanos e venham lhe salvar do abandono, fugindo de garotos maiores para não apanhar devido ao seu tamanho de nada e corpo pequeno e frágil… Na outra ponta, o que vemos em Divórcio é uma verdadeira colagem de aspectos da vida privada e suas relações turbulentas, um livro quase inaceitável e impublicável para o falso polimento e pudor brasileiro. O mesmo é válido para o Sargento Tobias e suas performances posteriores etc. No terreno do paradoxo e ambivalências hoje me parece ser um autor mais comedido, participando de eventos como um chamado de Flipobre feito e transmitido pela web, no exato oposto de um livro como “Divórcio” e suas colagens. Retomando aí uma pauta de discussão muitas vezes colocada em xeque nas reuniões deste grupo: qual autor, tal vida. Obviamente que está discussão já está bem mais avançada. Gostei muito do termo “DJ da Literatura”, bem como de suas referências igualmente interessantes e importantes. Enfim. A “Escrita não-criativa” ou “não-original” parece apontar para uma outra forma de fazer “literatura” e ou “objeto-experiência artístico” a partir do agenciamento de outros materiais, produtos e conteúdos…
Marcos, muito obrigada pelas observações. Muito interessante pensar no que você disse, sobre Lísias, em seus dois últimos “romances”, mais especificamente em divórcio, utilizar recortes da “vida real” para montar sua narrativa. Eu não tinha pensado nisso, e é verdade, a vida também é material, é história e pode ser usada em um processo de curadoria tbm, oras, pq não! É mais ou menos o que o Markson faz no “Isso não é um romance”, livro que vc citou. rs, ótima observação Marcos. Então, eu também tenho olhado a produção contemporânea e observado que de algum modo, algumas obras estão reverberando num sentido de não conseguirmos mais encaixá-las a um conceito fechado ou enquadramento de gênero. Eu acho isso bastante instigante, pois parece que tem alguma coisa aí que se tornará importante, afinal, se há até mesmo editoras dispostas a lançar materiais estranhos, há alguma coisa aí.
Um abraço
“há alguma coisa aí.” Vejo aí muito pano para uma excelente Tese de Doutorado e Pós-Doutorado…
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