Autofiguração: uma chave possível

CAPA DAS BOOTY

Por Nívia Maria Santos Silva

Na cena da contemporaneidade, surgem diversos termos que se apresentam resistentes a uma catalogação taxonômica rígida, escapando dos limites que a classificação de gênero impõe. É assim, por exemplo, com a autoficção e com a noção de antibiografia, criada pela teórica argentina Leonor Arfuch. Dentre as várias possibilidades investigativas para pensar as narrativas de si, a autofiguração emerge como uma modalidade de autorrepresentação.

A autofiguração, no entanto, não é um gênero, mas uma estratégia textual presente nas narrativas de si. Vale salientar que existem formas de autofiguração que fogem ao gênero das autobiografias e se apresentam em outros “momentos autobiográficos”. Nesses momentos, as ideias do autor sobre ato poético, suas leituras, seus juízos sobre outros escritores, a forma de assumir sua prática literária são elementos que servem para a construção das imagens de autor e devem ser considerados tanto como uma “apresentação muito cuidadosa de si”, que se vale da proeminência do espaço biográfico na cena contemporânea conforme o analisa Arfuch, quanto como uma estratégia de ataque e defesa, que, uma vez problematizada, pode oferecer rendimentos críticos.

Esses “momentos biográficos” estão cada vez mais dispersos em entrevistas, depoimentos, sites e blogs. São neles que as marcas da autofiguração mais são evidenciadas, por serem um espaço de presença e autorreferencialidade, demarcando posições, ideologias e deixando manifestas informações biográficas, pelo menos aquelas que o autor deliberadamente deixa saber.

A entrevista é um dos gêneros que mais vem atribuindo autenticidade à autorrepresentação. Ela se tornou um eficaz veículo da autofiguração porque a imprensa é um agente de consagração e um gerador de capital simbólico (prestígio), o que legitima os ditos sobre si. Nessas instâncias da enunciação sobre si, o entrevistado, entre o que anuncia e o que omite, entre o que esquece e o que lhe escapa, vai inventando vidas que passarão a ser vistas como sua vida.

Por isso tudo, a autofiguração é uma chave possível de estudo do poeta Bruno Tolentino. Sua autofiguração de polemista, tão escrachada quanto presumida, deixava perceber de forma subjacente, um intelectual de amplas leituras e de postura crítica bem definida. Ela foi, sobretudo, uma tomada de posição já que cada entrevista representava também uma reivindicação, um manifesto, uma crítica a determinados grupos e posturas

literárias. Na entrevista, encontrava sua tribuna, um meio de fazer-se ouvir e difundir suas ideias sobre a filosofia da forma, sobre o ofício de poeta e sobre aquilo que dizia ser a luta da sua vida inteira: separar a realidade da ideia que se tem sobre ela.

Nesta época em que o sujeito tem um lugar de enunciação privilegiado, como chama a atenção a critica argentina Beatriz Sarlo a respeito da guinada subjetiva contemporânea, Tolentino soube chamar atenção para si, e, nessa preocupação por forjar a si próprio, tomou a posição do poeta escolhido e incompreendido. Para nós, a elaboração dessa figura autoral é ferramenta indispensável para efetivação de seu projeto literário, por esse motivo seu estudo se torna produtivo.

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2 Respostas para “Autofiguração: uma chave possível

  1. Ao lançar mão da entrevista enquanto registro biográfico, o autor torna-se sujeito de uma performance. Essa exposição pública de si “garante” outra dimensão à autoficção, posto que o sujeito é resultante de uma construção.

  2. niviamariavasconcellos

    Elizangela, muito obrigada pelo seu comentário.

    A autofiguração, como diria José Amícola, é uma forma de autorrepresentação. Ela se estabelece não só na entrevista, mas em todo momento em que o autor se coloca como objeto de sua fala. O nome do autor parece não bastar, então seu corpo, sua voz, sua presença suplementa o texto, por meio da exposição da imagem de si. O que é mais instigante é que a construção dessa imagem nem sempre é consciente ou fruto de estratégias autorais deliberadas e, por outro lado, depende também da recepção, que não está submetida à vontade do autor. O sujeito performático não possui total controle da situação, isso torna a questão mais complexa do que possa parecer.

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