A performance em uma crônica de Lemebel

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Por Eder Porto

Relendo o ensaio de José Miguel Wisnik – Algumas Questões de Música e Política no Brasil. In: Sem Receita, ensaios e canções (2004)-, pude reavivar algumas ideias acerca de linguagens do performativo, através do corpo e da musicalidade na representação literária. O ensaio me interessa, particularmente, para pensar a literatura como Performance (e suas maneiras de desentranhar as linguagem do corpo).

O que sugere Wisnik é que, em se tratando de linguagem musical haverá sempre um caráter cívico-disciplinador, uma standardização em favor de pequenas ilhas de “bom gosto” musical e, em consequência, uma negativa à divergência, à “poluição” sonora, à apropriação e degeneração dos ritmos “puros”. Mas, para o crítico, por trás, por exemplo, da orquestração do ufanista samba-enredo de Ary Barroso, vem a malandragem carioca e a negação cívica do brasileiro bom trabalhador.  Enfim, pode haver em música um intento de uma “desrecalcante afirmação de uma rítmica sincopada a anunciar um corpo que se insinua com jogo de cintura e consegue abrir flancos para sua presença, irradiando diferença e buscando identidade no quadro da sociedade de classes.” (WISNIK, 2004, p. 206)

 Pensei nesses paradigmas para ler o autor que pesquiso, Pedro Lemebel, e a tessitura de sua performance artística.

 Veja-se, por exemplo, a crônica Chile Mar y Cueca (o arréglate Juana Rosa). Nesse texto, Lemebel desentranha a insurgência da carnavalização popular frente ao civilismo de fachada do 18 de Septiembre, a maior festa patriótica chilena. De um lado, o  ethos, o discurso nacionalista, o som reto das marchas militares, e uma participação “popular” cheia de ufanismo e conformidade plastificada. Do outro, o pathos, as adulterações e descompassos à chilenidad  cocoroca, quando as massas saem para as ruas e impõem uma inflexão sobre a representação harmônica da propaganda da “doce pátria”:

A Cueca Chilena,  como gênero musical, é o instrumento da narrativa do qual Lemebel se vale para descrever uma coreografia regrada da sociedade chilena e criticá-la:  “uma aeróbica-cueca que multiplica em giros e assédios corteses o gesto macho de dominância sobre a mulher”.  A Cueca, diz Lemebel, “é uma dança que encena a conquista espanhola para o criollo latifundiário, amariconado em sua roupinha flamenca”, a fim de levar “a indiazinha ali atrás do poleiro”. Tratando dessa forma o gênero musical, a crônica  parodia a emulação do modelo colonizador de opressão e  provoca o desmascaramento da maquiagem cívica e das simbologias recalcadas por trás dela.

 No texto, o corpo proletário em dia de farra, se esquiva, se contorce, se rebate à revelia desse modelo ético-cívico. O corpo, envolto nessa redoma músico-social, é interpelado a enfrentar e conter a imitação ideal desses modelos cívicos, revelando as suas descontinuidades (ou síncopes) sociais.

E entre “com licencinha” e “com licencinha” sai pela intempérie fria da madrugada e detrás das tábuas das barracas de comida solta o seu jorro espumante que faz coro junto à fileira de pintos inchados de tanto festejo […] E enquanto isso ressoa a cumbia e o folio começa a puxar o “mira como va negrito” e as pontas de cigarro são tragadas com pressa em um deslizamento de brasa que ilumina fugaz o rosto dos jovens, ele cai rodando pela elipse do parque em uma pirueta de balizas, churrasquinhos no espeto, posters do Papa, da Veronica Castro, o Colo-Colo, Santa Teresa e tudo quanto é santo canonizado pelo tráfico mercante dos acostamentos. E ali fica estirado no pasto, com a braguilha aberta que deixa ver o membro murcho e enrolado como uma serpentina ébria. Sem um tostão porque um moleque lhe roubou todo o salário do mês. (LEMEBEL, 2012)

Tal como emerge na crônica, o corpo, em seu transe alcoólico, em sua emergência cambaleante, em seu delírio sexual, dança outra música, mostra outra realidade, é interpelado a enfrentar a imitação ideal dos modelos cívicos.

 

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Uma resposta para “A performance em uma crônica de Lemebel

  1. niviamariavasconcellos

    Eder, foi por meio de sua pesquisa que conheci Pedro Lamebel e já li um texto seu sobre esse autor neste mesmo blog: “Lamebel e a crônica”. Ótimo ver o seu trabalho avançando. Muito perspicaz de sua parte a utilização da interpretação do Winisk sobre o ufanismo de Ary Barroso na leitura da crônica desse autor chileno. É significativa a identificação de um corpo que emerge, performaticamente, por trás de um ufanismo oficioso e que gera a própria negação do cívico e do patriótico ao desempenhar na música outro ritmo e na crônica outra história, uma história desrecalcada.

    Diante de seus dois textos, sem dúvida, Lamebel vem se mostrando um autor exemplar para o estudo da literatura como performance. Uma pergunta me vem à mente: Podemos dizer que a performance de Lamebel não está apenas em seus textos, como nas crônicas Chile Mar y Cueca e La loca del carrito, mas também se apresenta “dramatizada” em sua persona (bastante sui generis, diga-se de passagem)? Ou seja, ele é um autor performático de escritas performáticas?

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