Por Davi Lara
“Los escritores de antes” é o título de um comovente relato sobre Roberto Bolaño escrito por Enrique Vila-Matas em 2013, dez anos após a morte do escritor chileno. O relato abarca o período de três anos (1996-1999) em que Vila-Matas se relacionou com Bolaño na pequena cidade pesqueira de Blanes, na Catalunha, onde Bolaño viveu os últimos anos de sua vida. Trata-se de um relato de forte carga emocional, com algumas passagens muito tocantes e que pode, sem dúvida, ser colocado entre as principais contribuições para a consolidação do mito Bolaño. Embora se concentre na figura do autor de Os Detetives Selvagens, há muito de Vila-Matas no texto. Neste post, eu gostaria de comentar algumas passagens nas quais o escritor espanhol revela alguns aspectos de sua visão pessoal sobre a condição do autor contemporâneo.
As reflexões sobre os dilemas do escritor não é um tema alheio à ficção de Vila-Matas. Em alguns de seus romances ele aborda o tema de forma direta, como, por exemplo, em Doutor Passavento, romance protagonizado por um escritor experiente que se cansa da vida de conferências e entrevistas e resolve desaparecer para poder escrever em paz. Em “Los escritores de antes”, esse mesmo assunto é abordado. Entre outras observações, o autor faz uma remissão a uma conferência que leu na FLIP (Festa Literária do Paraty) em que questionou a situação da literatura no mundo e se pergunta, dentre outras coisas, “se os escritores não deveriam ser exclusivamente lidos ao invés de ser vistos, porque eu sempre pensei que no exato instante em que os escritores começaram a ser vistos, tudo deu errado.” 1
Muito embora não deixe de ser inusitado o fato de usar uma festa literária para se criticar o sistema que possibilita a existência de festas como essa, há de se admitir que não há nenhuma novidade neste ponto de vista. A ideia de que o “retorno do autor” (com toda a sua rede de entrevistas, prêmio, festas e encontros literários) é uma face de um processo maior de transformação da literatura em mercadoria não é nova. O que torna este texto interessante é que essa visão pessimista das possibilidades de existência do escritor contemporâneo é contraposta a uma ideia de escritor romântica e idealizada, que Vila-Matas reconhece em Roberto Bolaño. De acordo com seu próprio relato, desde o primeiro encontro com Bolaño, ele teve a impressão “de estar ante um escritor de verdade”; um escritor que “se assemelhava muito à ideia romântica que, na vida real, eu tinha perseguido durante duas décadas, a ideia que eu tinha do que devia ser um escritor”.
Essa oposição entre o que um escritor é e o que ele deve ser é bastante curiosa. No texto, ela corresponde à oposição entre o perfil ordinário do escritor profissional (que, para sobreviver, precisa, além de escrever, aparecer em programas e simpósios) ao tipo heroico de escritor que consegue, de um modo singular, que não significa necessariamente assumir a postura de outsider, se manter imune aos tentáculos mercadológicos. Esses heróis são chamados de “os escritores de antanho” (tradução castiça do título do relato “Los escritores de antes”), termo no qual se percebe certo saudosismo romântico e que não é estranho aos discursos de detratação do presente, não só da contemporaneidade, mas de todas as eras.²
Mais do que concordar ou discordar com essas duas concepções, opostas e inconciliáveis, de escritor, creio que a forma mais profícua de encará-las é vê-las como uma espécie mista de reação e adaptação às mudanças dos modos de funcionamento do campo literário contemporâneo. Além disso, outra coisa que torna essas ideias dicotômicas de escritor valiosas é a possibilidade que elas trazem de ler as obras ficcionais de Vila-Matas, nas quais é comum ver este tipo de conflito entre a condição real do escritor contemporâneo e o que se acha que o escritor deve ser.
¹Todas as citações do post são traduzidas por mim do original em espanhol.
²Apesar desta dicotomia, é interessante observar que, para Vila-Matas, essa aura romântica que ele via em Roberto Bolaño está intimamente relacionada ao fato do escritor chileno ter passado a maior parte de sua vida no ostracismo, como um outsider, livre para se dedicar exclusivamente a escrever, longe da vida de privilégios e de compromissos alheios à literatura do escritor profissional.
Davi seu texto está bastante claro e conciso. No meu ponto de vista, o autor deveria ser apenas lido, por isso, concordo em partes com a reflexão. Considero que o romance, a literatura nos transpõe para um mundo ficcional, contudo, quando nos deparamos com o real, o que idealizamos se rompe. Acredito que na atualidade há uma necessidade de se tornar presente, por isso, o escritor contemporâneo para sobreviver ao mercado acaba aderido aos meios de comunicação e até mesmo as grandes feiras literárias. Talvez estas possibiidades acabam por promover escritores que não tenham tantos méritos assim. Mas, é preciso ver os dois lados, há questões positivas e negativas. Mas, eu apoio a arte pela arte, não devemos transformá-la em mercadoria. Este é meu ponto de vista.
Oi, Elane. Muito obrigado pelo comentário e por compartilhar a sua opinião. Eu devo confessar que não tenho uma opinião formada sobre o assunto. Em geral, eu também sinto um certo incômodo com o fato de o escritor ser tratado como uma celebridade. Recentemente eu vi o documentário “José e Pilar”, que registra os últimos anos de José Saramago, logo depois dele ter ganhado o nobel, e algumas passagens (como as várias seções de entrevistas) me fizeram pensar no quão sem sentido pode ser esse “star system”.
Por outro lado, eu penso que essa exposição da figura do autor oferece ao escritor profissional uma opção de subexistência para além da pura e simples venda de livros. Eu nem falo de casos de escritores de renome, como o Saramago, mas dos escritores iniciantes e desconhecidos. Para esse tipo de escritor, creio que essa rede de “exposição” do autor (encontros, festas, simpósios, feiras, oficinas, saraus etc.) acaba servindo de oportunidade para ele divulgar seu trabalho e conhecer pessoas ligadas ao campo literário, desde leitores até editores, agentes literários, críticos ou outros escritores. E isso sem falar nos concursos literários, que também são uma mão na roda.
Mas é claro que esse assunto é muito complexo e ele ainda dá muita matéria para discussão.
Oi, Elane. Muito obrigado pelo comentário e por compartilhar a sua opinião. Eu devo confessar que não tenho uma opinião formada sobre o assunto. Em geral, eu também sinto um certo incômodo com o fato de o escritor ser tratado como uma celebridade. Recentemente eu vi o documentário “José e Pilar”, que registra os últimos anos de José Saramago, logo depois dele ter ganhado o nobel, e algumas passagens (como as várias seções de entrevistas) me fizeram pensar no quão sem sentido pode ser esse “star system”.
Por outro lado, eu penso que essa exposição da figura do autor oferece ao escritor profissional uma opção de subsistência para além da pura e simples venda de livros. Eu nem falo de casos de escritores de renome, como o Saramago, mas dos escritores iniciantes e desconhecidos. Para esse tipo de escritor, creio que essa rede de “exposição” do autor (encontros, festas, simpósios, feiras, oficinas, saraus etc.) acaba servindo de oportunidade para ele divulgar seu trabalho e conhecer pessoas ligadas ao campo literário, desde leitores até editores, agentes literários, críticos ou outros escritores. E isso sem falar nos concursos literários, que também são uma mão na roda.
Mas é claro que esse assunto é muito complexo e ele ainda dá muita matéria para discussão.
Oi Davi. Gostei muito do texto. A discussão sugerida nos faz pensar sobre a figura do escritor. Atualmente é muito comum encontrarmos escritores em programas de televisão, concedendo reportagens para revistas e jornais, dando declarações em eventos e até mesmo comparecendo em feiras literárias para dar autógrafos. Sem falar nas redes sociais, como facebook, twitter, e até mesmo os blogs, tais plataformas possibilitam e facilitam a divulgação de livros e da própria figura do autor. Schollhammer no livro “Ficção brasileira contemporânea”, afirma que os escritores contemporâneos tem uma grande urgência em se relacionar com a realidade histórica, daí a preocupação pela criação de sua própria presença, que é facilitada por meio das novas tecnologias. Enfim, essas questões demandam estudos para serem averiguadas quanto ao lado positivo ou negativo desta criação da presença dos escritores nos mais variados lugares. É uma questão para pensarmos.
Oi, Neila. Que bom que você gostou. Você tocou num ponto que eu não exploro no post, que é a presença da internet e das redes sociais na nova. É algo a ser pensado, sem dúvida. Obrigado pela sua contribuição e até a próxima.
Davi, que discussão maravilhosa o seu texto apresenta. Bem Vila Matas além deste relato que faz sobre Bolaño, também presenteia os seus leitores com o título “Paris não tem fim”, que de certa forma possibilita aos estudiosos da literatura pensar sobre a questão da representação do escritor. Enfim, é complexo como já foi citado no comentário anterior pensar sobre esta questão dos escritores estarem ou não aparecendo em feiras literárias, em eventos, buscando a criação de sua própria presença. Mas se pensarmos pelo ponto positivo. Por exemplo, uma pessoa que não esteja neste circuito literário e que deseja se tornar autor e ser conhecido. Estes eventos ajudam e facilitam. Muitos leitores ficam entusiasmados em comparecer e está próximo dos autores. Isso é bom?! Ou ruim?!. Aí eu penso em alguns escritores contemporâneos como a Adriana Lisboa, em algumas entrevistas, a escritora pontuou que fez mestrado e doutorado na Uerj com o objetivo de escrever e divulgar os seus textos, pois não tinha interesse em seguir carreira acadêmica. Acredito que cada escritor utiliza algumas estratégias de acordo com sua necessidade, pois ser escritor não é fácil, viver da literatura é difícil, até mesmo se pensarmos em vários declarações que alguns escritores brasileiros concedem por aí. Davi lhe parabenizo pela abertura que seu texto dar para refletirmos sobre estas questões. Fácil não é!
Oi, Maria. Eu agradeço pelas suas palavras, muito gentis, sobre o texto, bem como pela sua contribuição, que abriu outras formas de se encarar a questão. Eu gosto quando você fala dos escritores que criam estratégias de atuação de acordo com o contexto, como o exemplo que você dá da Adriana Lisboa. Isso mostra um lado mais dinâmico desse processo de profissionalização do escritor. Embora não sejam os meios ideais (longe disso), hoje em dia existem meios mais ou menos acessíveis do escritor promover sua obra. Se eles são “válidos”, essa é outra questão que envolve, dentre outras coisas, a nossa visão de sociedade (ideologia) e os valores e objetivos de cada escritor. Reli recentemente um texto polêmico de Flora Sussekind escrito em 2010 a propósito da morte de Wilson Martin (“A crítica como papel de bala” é o título do texto) em que ela defende o atual campo literário com o argumento de que ele tem uma estrutura mais democrática e flexível, com menos papeis predeterminados e um leque maior de possibilidades de atuação dos seus agentes. É um argumento interessante e que merece ser levado em conta, questionado, debatido. E é isso mesmo, esse assunto rende.
Bastante curiosa essa resistência às estratégias da profissionalização do autor por parte do Villa-Mattas, é como se isso desvalorizasse a sua obra, no sentido dele ser menos autor por fazer-se aparecer mais. A obra ainda está aí, agora me vêm à questão: Qual o sistema valorativo da literatura hoje? Aí, temos que pensar se o retorno do autor chegou ao ponto de modificar a maneira em que lemos essas obras. Se não houvesse essa exposição de Villa-Mattas, leríamos a obra dele de outra maneira? Bem legal o texto, Davi, e como você mesmo disse, esse assunto rende bastante.
Pois é, Débora. Eu acho que você falou uma coisa bem interessante, que tem tudo haver com a leitura que eu faço. É isso de Vila-Matas se achar menos autor por aparecer mais. É como se a visão que ele tem de literatura fosse 0% compatível com a inserção agressiva do escritor no mundo do mercado. No extremo, isso está intimamente ligado àquilo que você diz no começo do seu post sobre o “Gênio não original”. Em geral, muitas vezes sem que nos demos conta, cultivamos uma ideia de autor bem cristalizada. A mulher ou o homem solitária(o) frente a uma folha em branco, imersa(o) nos seus dilemas internos. Eu mesmo confesso que me sinto bastante atraído por esse estereótipo. E isso acaba gerando uma tensão quando, de repente, o escritor, além de escrever, tem que se “profissionalizar”. Acho que é mais ou menos por aí que eu interpreto a reação de Vila-Matas.
Acho que a discussão que está movimentando os comentários gira em torno do próprio significado da profissionalização. Vender os produtos da cultura, literatura inclusive, não é a mesma coisa que vender sabonetes, como dizia Silviano Santiago. E acho que o problema reside nisso: como pensar a legitimidade da venda de um produto cultural em um regime de mercado voraz cuja lógica é oposta a da produção intelectual? Ou para evocar mais uma vez S.S.: o autor “precisa profissionalizar-se antes de se tornar um profissional das letras”.